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Boca A Boca

Boca A Boca - Há pós-modernidade onde há dor? Haris Pašović e Frank Zappa

Por

 

Patricia Portela
July 3, 2017

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Boca A Boca - Há pós-modernidade onde há dor? Haris Pašović e Frank Zappa

Há pós-modernidade onde há dor? Haris Pašović e Frank Zappa,
Ou
Did anybody cry?


Eu não sei bem a história toda porque sou só mais um peão do seu labiríntico tabuleiro. Mas sei que o ano era o de 96.

Sei que tinha chegado há pouco a Utrecht para viver, estudar e trabalhar pela primeira vez sozinha. Sei que tinha pouco mais de 20 anos, o chão da sala onde estava tinha praí uns 200 e a carpete persa onde atuavam os músicos e atores da peça uns 500 e era o único adereço para além dos seus instrumentos musicais. O bar era improvisado, vendia cerveja e vinho em copo de plástico por menos de um florim e as cadeiras emprestadas não eram mais de 50 e todas de plástico. Lembro-me de um piano, de um microfone, um guitarrista, um baixista, talvez e também, um saxofonista em cena, mas não sei bem ao certo. O provável vocalista contava as histórias, intercalava-as com momentos musicais enquanto o baixista e o baterista acompanhavam com segundas e terceiras vozes.

Eu tinha uma ideia muito longínqua e distorcida do que era ou poderia ser uma Europa continental, uma imagem muito alimentada a literatura francesa do século XIX, alguns jornais locais e pouca experiência geográfica ou pessoal.

Ele, Haris Pašović, com pouco mais de 30 anos, era um encenador, ou produtor, ou autor, ou simplesmente o encorajador desta e doutras peças, um artista multidisciplinar e director do então MES, Festival Internacional de Teatro de Sarajevo, aquela que em tempos fora a capital da antiga Jugoslávia e de onde ele e a sua companhia não saíam há mais de 1425 dias de cerco. As fronteiras voltaram a fechar por breves dias e, sem poderem regressar de imediato à terra natal, Pamela Howard, diretora do então magnífico Masters of Art in Scenography lecionado na Grã Bretanha (na Central St Martins College of Art) e na Holanda em parceria com Henny Dörr (Utrecht Faculty of Theatre) ofereceu-lhes guarida em troca do que melhor sabiam fazer: espetáculos.

Foi neste preciso momento que os nossos percursos tão díspares se cruzaram de uma forma inacreditavelmente breve, radical e duradoura.

E ao som de Frank Zappa.

Frank Zappa



 

Entre programas de festivais antigos e traduções de algumas peças que se vendiam na entrada, encontrei um guia alternativo e pseudo-Michelin de Sarajevo, uma paródia trágica de pedras na mão sobre como sobreviver numa cidade cercada escolhendo os mais turísticos itinerários para fazer jogging enquanto se vai buscar água potável a sete quilómetros de distância todos os dias, como aquecer uma casa sem vidros nas janelas ou fazer um repasto gourmet com dois ovos e um punhado de arroz. Folheei algumas páginas com o horror de uma miúda que crescera de costas voltadas para Espanha, com uma família de emigrantes espalhada para lá dos Atlânticos e dos Pacíficos e que percebe, pela primeira vez, que a Europa em guerra é uma coisa ali mesmo, nem sequer é ali ao lado. O Kusturica só veio confirmar tudo isto um pouco mais tarde e com a mesma dose de incredulidade.

Confesso que roubei o programa dessa noite que guardei, algures, e tão bem, que por certo o reencontrarei, um dia, para minha surpresa e no momento certo. Nesse programa estava impressa a história de um homem disfarçado de leão, uma fábula dos tempos de hoje com que o espetáculo abria e que era mais ou menos assim, ou pelo menos, foi assim que ela me fez diferença na minha história de então.

Alguém que queria fugir da sua cidade em chamas é aconselhado a mascarar-se de leão porque há vagas no jardim zoológico e essa é uma oportunidade única de escapar aos horrores da Guerra e ter cama, comida e roupa lavada. Alguém decide correr o risco, disfarça-se o melhor que pode, passa no teste de admissão dos treinadores. Infelizmente a felicidade é uma ilusão breve, o teto que se oferece é na jaula dos leões. Atiram-no lá para dentro com um pedaço de carne. Esse alguém disfarçado de leão encara os outros leões. Frente a frente, o silêncio e a imobilidade parecem eternas. Um dos leões da matilha avança, robusto, vagaroso, assustador. Em pânico, o homem disfarçado de leão pensa que é o fim, sobrevivera a 4 anos de uma carnificina que chegara por todos os lados para acabar os seus dias comido pelo rei da selva, quando o outro leão lhe segreda ao ouvido: aqui somos todos irmãos vestidos de bichos, atreves-te a morder-nos e fazemos-te a folha!

O público dá uma risada ou outra e o contador de histórias pergunta ao microfone:

- Alguém se riu?

A audiência congelou.

A partir daqui, as restantes fábulas foram semelhantes, o bastidor de cada uma o absurdo que é uma guerra entre vizinhos, o que é perder a família, chegar a um país que se desconhece sozinho, fazer-se passar por outro para não se morrer só porque se é o que nos aconteceu ser, trocar de identidade, de papéis, de profissão, recomeçar e recomeçar e recomeçar, em cada novo zoológico, sem se saber muito bem para quê. No final de cada conto, sempre uma pergunta:

- Alguém se lembra?

Nem uma resposta.

- Alguém viu?

Um espetador desconfortável ajeita-se na cadeira, alguém aproveita para ir ao bar buscar mais uma cerveja, alguém tosse, pega num lenço para se assoar entre canções.

- Algum de vocês estava lá?

E à medida que um concerto em cima de um tapete persa levanta voo, eu percebo que a Europa tinha acabado, logo agora que aqui tinha chegado.

A última história foi muito curta, e posso estar enganada mas era ou sobre a impossibilidade de Frank Zappa escrever canções de amor ou fui eu que concluí isso enquanto devorava cada palavra com o fervor de quem está atónito. Sei que, surpreendentemente, e contra o meu iniciático conceptualismo ali a morrer à nascença, a história terminou com a seguinte pergunta:

- Alguém chorou?

Ao que a rapariga, sentada ao meu lado, de nacionalidade libanesa, respondeu, com uma voz que me pareceu vir das entranhas da sua própria terra:

- Oh, yes!

O público caiu num pranto.

O concerto foi magnífico.

Foi nesse dia que percebi que não há pós-modernismo onde há dor.

Ou seja, não há pós-modernismo sem maquilhagem.

Ou se há, desvanece mal borramos a cara de rimmel por causa das lágrimas.

Ou seja, sem o verniz dos artistas, o século que insistiu em chegar ao fim da história, (com h pequeno e com H grande) comprou assim o seu próprio genocídio para disfarçar o engano da moda.

E tudo isto enquanto o concerto continua, sábio e acutilante, sobre a relíquia persa.

E tudo isto enquanto as vítimas fogem, disfarçadas de leões, na esperança de poderem sobreviver numa jaula, abocanhando ou sendo abocanhados pelos vizinhos, a troco de cama, pão, teto, um chão.

Frank Zappa and the mothers of Invention – Freak out!  - Trouble every day




Patrícia Portela nasceu em 1974. Vive entre Lisboa e Antuérpia. Escreve para vários formatos. http://www.patriciaportela.pt/

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