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Cartografar o invisível

Por

 

Suzana Menezes
November 7, 2025

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Cartografar o invisível

Ao mapear, reconhecer e legitimar o seu ecossistema cultural, a Área Metropolitana do Porto ensaia um gesto de futuro: transformar a cultura em política de direitos, em fundamento de cidadania e condição de desenvolvimento. Neste gesto, discreto e inaugural, cumpre-se algo que sempre esteve latente: a cultura como direito que antecede todos os outros.

A cultura como dignidade: o direito que antecede todos os outros

Há mais de uma década, a perita da ONU Farida Shaheed sinalizou enfaticamente que os direitos culturais são “a expressão mais profunda da dignidade humana”. Essa afirmação, longe de ser mero ornamento teórico, traduz uma ideia radical: a cultura é o espaço onde uma sociedade se pensa a si mesma, onde imagina, se reconhece e se transforma. Sem cultura, não há liberdade. Há, apenas, sobrevivência administrada.

O relatório de Shaheed mostrou que os direitos culturais completam a universalidade dos direitos humanos, porque são o lugar onde cada pessoa pode ser diferente sem ser desigual. Hoje, essa intuição encontra eco em dois documentos que marcam uma viragem histórica: o Plan de Derechos Culturales de Espanha e o UNESCO Global Report on Cultural Policies (2025). Ambos enunciam o que há muito pressentimos, mas tardamos em fazer refletir politicamente: a cultura não é um luxo da consciência, mas um bem público global, condição de dignidade e de sustentabilidade, de liberdade e de democracia.

Proteger o direito à cultura é proteger a capacidade de imaginar. É assegurar o direito de cada pessoa a dar forma ao mundo e a nomear o que existe. Essa é a base ética sobre a qual se ergue o movimento contemporâneo dos direitos culturais, um movimento que vai de Shaheed à UNESCO, passando pelo exemplo espanhol, e que propõe uma nova gramática para a política pública, onde imaginar se assume como ato político e a cultura se revela como o seu primeiro território.

Mas esta transformação não se cumpre em cimeiras ou relatórios. Cumpre-se nos territórios, nos corpos e nas práticas quotidianas. É aí, onde a cultura é exercício de cidadania, convivência e presença, que o direito se torna experiência.

Da política da cultura à política dos direitos culturais
É nesse horizonte que a Área Metropolitana do Porto vem desenvolvendo, desde 2024, o Estudo e Mapeamento do Ecossistema Cultural Metropolitano. O que parece, à primeira vista, um levantamento técnico, é, na verdade, um ato político e simbólico.

Ao identificar mais de cinco mil entidades e agentes culturais, o projeto revela uma geografia invisível, uma trama de memórias, práticas e afetos que constitui o verdadeiro tecido da vida coletiva. Mapear é, aqui, reconhecer e reconhecer é o primeiro gesto de justiça.

Este mapeamento não é, deste modo, mera investigação aplicada, mas antes, uma prática de democracia cultural. Ao fazê-lo, a AMP assume que o seu território é, antes de tudo, um espaço de direitos, pelo que a cultura deixa de ser entendida como domínio a gerir para se transformar em forma de convivência a cuidar.

O estudo da AMP propõe, assim, um deslocamento profundo: de uma política da cultura para uma política dos direitos culturais. Uma política da cultura organiza, planeia, administra. Uma política de direitos culturais transforma a própria ideia de política, abrindo-a à imaginação e à diferença.

Participar na vida cultural é, afinal, tão essencial quanto o direito à educação, à habitação ou à saúde. É o direito a existir simbolicamente, a inscrever-se no espaço público e a partilhar a construção do comum. Quando associações, artistas e cidadãos participam na produção do conhecimento sobre o seu ecossistema, a democracia cultural deixa de ser promessa e torna-se prática.

Portugal ainda não deu este passo de modo estrutural. Continuamos, excessivamente, a tratar a cultura como setor, quando ela é, na verdade, a matriz transversal de todas as políticas públicas. Falta-lhe um plano que una educação, ambiente, economia e território numa mesma linguagem de sentido e pertença. Falta-lhe, talvez, aquilo que Espanha já ousou conceber: um Plano de Direitos Culturais.

O pacto metropolitano: cultura como infraestrutura de futuro
A AMP pode, se quiser, ser o território onde esse plano se ensaia. Um território múltiplo, entre litoral e interior, tradição e inovação, centro e periferia, onde a cultura se mostra não como património anóxico e (pré)determinado, mas como campo de forças vivas. Porque o direito à cultura não é o direito de assistir, mas o direito de existir, de ter voz, de criar significado, de habitar o espaço público como lugar de (re)invenção, de si, do outro, do coletivo.

A política cultural do futuro começa aqui: no reconhecimento de que planeamento e imaginação, cultura e justiça social, são inseparáveis.

Por isso, o caminho que hoje procuramos abrir com esta cartografia invisível passará, num futuro próximo, por consolidar um Sistema Metropolitano de Direitos Culturais, capaz de articular autarquias, universidades, criadores e comunidades numa rede de cooperação simbólica. Mais do que coordenar, trata-se de tecer, de construir uma ecologia de relações e cuidados, uma economia da imaginação partilhada.

Esse sistema será tanto mais eficaz quanto mais conseguir integrar a cultura nas estratégias de coesão, ambiente e inovação. Porque a cultura, como temos insistido, não é apenas motor económico-turístico, mas antes recurso ecológico e instrumento de cidadania.

Por outro lado, sustentar este processo exige continuidade, memória e escuta. Exige permanência para além dos tempos administrativos. Para tanto, a criação de um Observatório Metropolitano de Cultura e Direitos Culturais é menos uma medida técnica do que um gesto de consciência. É a vontade de pensar a política cultural como processo vivo, em permanente autocrítica e reconstrução.

O mapa como promessa
O que o mapeamento da AMP revelou até aos primeiros dias deste outono de 2025, não são números, mas desigualdades e possibilidades. Entre municípios desiguais em recursos e visão, o desafio é o de uma verdadeira redistribuição simbólica que semeie condições para que a diversidade se torne equidade.

E nenhuma transformação será duradoura se não for acompanhada por uma política de proximidade e de participação. Nenhuma transformação será sustentável se não devolver às comunidades a autoria das suas práticas culturais.

A democracia cultural não se decreta: cultiva-se. É uma prática de cuidado, um exercício de escuta, uma ética do tempo e do território.

Estas possibilidades de caminho não são tecnicismos, mas antes, gestos de futuro. Porque, ao contrário do que tantas vezes se crê, a cultura não é a cereja do desenvolvimento, mas o fermento que o faz acontecer. Sem cultura, não há pensamento crítico, nem coesão social, nem imaginação coletiva.

O que a AMP ensaia, com o seu mapa invisível, é uma forma de cidadania por vir. No fundo, o que se cartografa não são entidades ou práticas, mas a própria possibilidade de imaginar uma região diferente. A cultura é o lugar onde o desenvolvimento ganha alma. É o direito que funda todos os outros e talvez o primeiro que precisamos reaprender a exercer.

 

Suzana Menezes
É Secretária Metropolitana para a Cultura, Património e Criatividade, na Comissão Executiva Metropolitana do Porto. Entre 2019 e 2023 foi Diretora Regional de Cultura do Centro. Entre 1995 e 2018 exerceu funções na Câmara Municipal de S. João da Madeira, tendo sido chefe de divisão da cultura entre 2009 e 2018, assumindo a direção e gestão do Museu da Chapelaria e Museu do Calçado (entidades que concebeu), dos Paços da Cultura, da Casa da Criatividade e da Biblioteca Municipal. Entre 2011 e 2015 assumiu, cumulativamente, a função de Diretora Executiva da Oliva Creative Factory. É licenciada em Comunicação Social, Mestre em Museologia e Doutorada em Estudos Culturais.Integrou em 2014, o Núcleo de Investigação em Políticas Culturais, do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho e é autora de várias publicações e artigos e palestrante em cursos, seminários e colóquios, nacionais e internacionais.

Foto: Cor(p)o Metropolitano © AMP/Vinícius Ferreira

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