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Num tempo obcecado por métricas, um dos principais desafios sociopolíticos ainda consiste na mudança perceptiva sobre os impactos intangíveis, afectivos e relacionais da cultura.
I
Trabalhar em cultura e artes é, antes de mais, plantar a invisibilidade – o que constitui uma potência e, por vezes, também um dos motivos que – numa sociedade amplamente ancorada no material-digital e em informação mensurável e contabilizável – explica atitudes de subvalorização ou incompreensão face a essa tonalidade maior da cultura que consiste em inquietar, questionar e transformar o humano, e em activar um fluxo-ressonância junto do outro.
Se é um facto que a aplicação de métricas e avaliações quantitativas em relação às políticas culturais, aos seus instrumentos estratégicos e à repercussão da oferta junto dos seus destinatários constitui algo necessário e útil, reduzir a essa medição-parametrização o seu efeito pode revelar-se bastante diminuidor e dispersor. Essa dimensão, muito institucionalizada, de disciplinamento, mensurabilidade, concretização e previsibilidade, focada num esforço de redução da incerteza, acarreta consigo, porém, menor margem para algo essencial à cultura/artes: o i(ni)maginável, a fantasia, o risco, o irrealismo realizável, a especulação não aritmética, a “instabilização” criativa.
Isto é particularmente saliente no acompanhamento, análise e avaliação de projectos culturais. Para lá do ajuizamento quantitativo, da leitura “exceliana” e da aquilatação das externalidades, é crucial não descurar o que é invisível e não aparece nas estatísticas, ou seja, os impactos intangíveis, afectivos e relacionais dos mesmos: junto dos que os realizaram e neles intervieram em níveis diversos, no seio dos seus públicos-alvo e em planos (aparentemente) mais colaterais e menos evidentes. São essas múltiplas urdiduras-filamentos-sinapses que, conjugados, também contribuem para a criação de um sentido de comunidade e partilha (com consequências [micro-]sociais, comunitárias, territoriais), o qual extravasa dados como a afluência de espectadores, o número de apresentações públicas, o somatório de likes e comentários nas redes sociais, a quantidade de críticas ou o volume de receita de bilheteira.
Uma visão também qualitativa, subjectiva e contínua das dinâmicas culturais implica: abraçar as dualidades, paradoxos e complexidades dos processos; compreender que os resultados surgem, por vezes, em tempos irregulares (não previsíveis à partida); relembrar que os participantes transformam os projectos à medida que com eles interagem; entre outros aspectos. Assumir a legitimidade da subjectividade e não a encarar como um indicador não científico ou pouco “sério”, como uma falha a corrigir ou um elo mais fraco, constitui um movimento revolucionário para os sistemas e práticas institucionais, sendo um mindset ainda encarado com cepticismo e apreensão.
Há que rever criticamente, no paradigma e operacionalização, o balanço entre as dimensões quantitativa e qualitativa na percepção, monitorização e avaliação das propostas culturais. Um desafio que, para lá da accountability convencional, passa também pela criação/diversificação de mecanismos e instrumentos práticos que contemplem uma visão mais holística dos projectos, em multicamada e sob perspectivas interligáveis (cruzando conteúdos, processos, relações), e que valorizem a significação das experiências – o que não deixa de ser um exercício de imaginação democrática.
II
Não ceder ao presentismo reveste-se de inegável relevância política. O presente está em modo de aceleração voraz, o que também é sinónimo de uma produção cultural e artística crescente, intensa, prolixa. Há uma oferta “imparável” que, sendo legítima e reveladora de uma assinalável vitalidade, transporta também em si, não só mas também no tocante à recepção cultural, uma potencial carga de previsibilidade, cansaço/desânimo e falta de correspondência entre quantidade e qualidade. “Consumo cultural” e “tempo cultural” surgem, neste contexto, como realidades distintas, diferenciando-se esta última pelo seu cariz mais exigente, longo, substantivo. Na mesma linha, inscreve-se a necessidade de oferecer resistência ao regime aceleracionista de contínua produção do novo, pois é preciso tempo (tantas vezes invisível) para pesquisar, criar, experimentar, errar, apurar, e também para participar, fruir, inferir, transformar.
São conhecidos os topoi que perpassam, actualmente, muitas das obras e programações artísticas patentes em variados contextos/campos culturais: as questões de género, o pós-colonialismo, a ecologia e sustentabilidade, o impacto da tecnologia/IA, a censura, o ódio e os extremismos, etc. Nas últimas décadas tem-se assistido a uma reafirmação da preocupação política na criação artística, a qual tem vindo a estruturar muitas das abordagens contemporâneas e contribuído para uma maior consciencialização social sobre inúmeras matérias – não comungassem arte e política, segundo Jacques Rancière, desse fito de produzir ficções que visam a “construção de uma nova relação entre a aparência e a realidade, o visível e o seu significado, o singular e o comum”. Por outro lado, a vinculação entre criatividade artística e esfera política também não deixa de estar relacionada com uma crença desmesurada no poder de transformação social da acção cultural e artística.
No subconsciente de diversos gestores culturais, directores artísticos/programadores e júris de concursos, nalguns discursos mais politizados, junto dos media, como até nas entrelinhas de certas orientações/regulamentações de programas de apoio ao sector, esse posicionamento (a arte como ferramenta de intervenção política) é hoje, tendencialmente, muito valorizado – até, (in)directamente, face a outras abordagens, também legítimas e pertinentes, que não denotam uma intenção explícita de responderem à “actualidade” ou de se inscreverem em agendas identitárias (e outras). São propostas que, pelo seu lugar de fala, motivação e natureza específicos, exploram outras mundividências, temporalidades e temáticas.
Na vertente da criação artística, uma mais notória ou sub-reptícia “pressão” (do mercado e não só) para gerar obras sobre temas actuais/recentes, mediatizados e “espectacularizados” (Guy Debord) poderá, contudo, introduzir afunilamentos, “receituários”, ruídos não orgânicos e outros condicionalismos nos (desejavelmente livres) processos de inventividade. Não obstante, existe também uma crença (não confessada?) no seio de várias franjas do milieu artístico – e que tem correspondência com a realidade – de que esse alinhamento presentista tornará, eventualmente, certas obras mais comunicáveis, apoiadas, programadas e circuláveis.
Do lado da recepção e dos públicos, também não é de somenos o risco de se multiplicarem programações artísticas que – por vezes, até numa atitude mimética e de replicação acrítica entre pares – estejam demasiado centradas nas mesmas “bandeiras”/temáticas, privilegiando lógicas de mediatismo, massificação e visibilização em que o enfoque nas trends sobrepõe-se a uma triagem curatorial mais baseada no tratamento, densidade, consistência e diferenciação estético-artísticos desses gatilhos temáticos.
O que está em causa, em última análise, é a primazia da liberdade criativa, da pluralidade artística. Para lá da propensão engagé que, em vários planos, a arte assume cada vez mais na contemporaneidade, é vital preservar uma abertura-respiração para outros imaginários, interrogações e mundos possíveis que não encaixem na percepção colectiva do momento, que não tenham uma ligação directa com o “hoje político”, que não se enquadrem nas molduras actuais. No fundo, essa postura divergente também constitui, de um modo outro, uma atitude política face ao aqui e agora (tão caro aos populismos), assumindo-se como contra-corrente aos valores da acção instantânea e legitimando promessas de futuro não imediatamente concretizáveis.
III
As redes – organizadas formal ou informalmente, de maior ou menor abrangência temática e territorial – desempenham um papel fundamental nos ecossistemas culturais. Elogiadas por uns, suscitando dúvidas e interrogações a alguns, criticadas por outros, as estruturas reticuladas baseiam-se, por norma, na convergência de denominadores comuns, em continuidades, coordenações e coligações de interesses. Daí também a legítima preocupação – como reverso desse modelo organizacional – com os eventuais (e reais) perigos da uniformização e homogeneização de estratégias, posicionamentos e práticas no âmbito das mesmas, bem como com a efectiva (ou aparente) articulação e cooperação regulares e profícuas entre os seus actores. E aqui há bons exemplos e outros menos conseguidos.
Mas uma teia também é um território de singularidades, “conflitos”, contrastes, diferenças, porosidades, o que confere complexidade a esse universo – como, entre outros, sublinha Vânia Rodrigues ao falar de uma rede como um “conjunto coeso de buracos”. Há uma tensão intrínseca na ideia de rede que se relaciona quer com o que, no seu seio, não encaixa (de todo ou em parte) numa lógica aglutinadora, quer com o que não é incluído/atraído pela mesma, quer ainda com o que é externo a esse emaranhado-radar.
Por tudo isto, um dos desafios maiores das redes culturais na contemporaneidade reside na sua capacidade de integrar – não de modo aleatório ou inorgânico, mas visando um rumo partilhado – a diversidade dos territórios, das suas visões políticas, dos seus modelos de gestão, dos seus níveis de profissionalização. Trabalhar em rede também pode ser uma via para a implementação de projectos de geometria variável a partir de idiossincrasias, fragilidades/pontos fortes, “especializações” dos seus membros, os quais activem e exponenciem novos questionamentos, dúvidas, diálogos, problemas positivos. Esta exploração colectiva das diferenças, contrastes, ambiguidades, fricções e divergências contribuirá também para que as redes culturais possam reinventar-se, redesenhar-se e afinar e intensificar a sua democraticidade.
Paulo Pires é gestor cultural e programador.
Trabalha, desde 2023, na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, I. P., inicialmente como assessor cultural da Presidência e, a partir de 2024, como Chefe de Divisão de Investigação e Dinamização Cultural.
Além de professor/formador, músico e mediador, desempenhou funções de direcção artística e de programação cultural nas autarquias de Loulé e Coimbra.
Criou o conceito em 2015 e foi director artístico do Festival Som Riscado, em Loulé.
Foi director do Departamento de Cultura e Turismo da Câmara Municipal de Coimbra, assessor do atual Director-Geral das Artes e adjunto da ex-Ministra da Cultura, Graça Fonseca.
A sul, no Algarve, foi também coordenador da programação cultural no Município de Silves, programador na Fundação Manuel Viegas Guerreiro (Loulé) e investigador, na área etnomusicológica, no Centro de Estudos Ataíde Oliveira da Universidade do Algarve.
É autor de inúmeras conferências, artigos e livros sobre cultura, artes e criatividade.
Foto: © Leandro Myslo (“A Solidão”)
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