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Conversas caminhadas

May 22, 2022

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Conversas caminhadas
A experiência directa da relação física entre o(a) artista e a natureza através de caminhadas é o ponto de partida para um conjunto de conversas andantes. Desafia-se à demora e reflexão sobre arte, natureza, política, até saberes alternativos. Qual a importância do espaço verde como lugar de encontro, de habitar ou de resistência? E qual o seu eco na prática artística? Que temáticas se cruzam e daí florescem?

Cada edição da revista Umbigo convida um(a) artista a caminhar, num espaço natural à sua escolha. É publicado o resultado dessa conversa, juntamente com um registo desse percurso, um mapa, fotografia ou anotação visual, textual. Vamos por onde a deambulação nos levar.

Por Carolina Trigueiros

“A partir do momento em que nos pomos a andar, há qualquer coisa que se acerta. Esta proximidade com o cansaço faz libertar uma clarividência. Às vezes fico a pensar num verso, fico dentro da cabeça a transformá-lo. Vou a encontrar outras formas de o escrever. Sei que quando caminho há uma calma quando se chega, mas é mais sobre essa possibilidade de se sair, contemplar. Não teres de estar sempre na acção”.*

É uma quarta-feira de janeiro, dia luminoso num inverno de recém ano novo. Combinamos que o nosso encontro será em Galamares, casa-atelier de António Poppe. Uma horta comunitária retém o meu olhar à chegada e o pessegueiro despido marca o passo da estação. Pedra, madeira, ao fundo uma lareira, uma sala que recebe manuscritos, apontamentos, folhas de caligrafia desenhada, livros, ora poesia, ora sobre meditação, fotografias como recordações próximas de tempos distantes, marcantes. Mumtazz, Damiano, Laleh Korramian, António Poppe e Pedro Tropa  em Chicago [imagem 1 ]. Este é o lugar da criação, a contemplação da natureza que se faz chegar pelas janelas. O ar que transporta a leveza do ser e estar fora do ruído das cidades. Partimos daí em direcção à área florestal mais densa, a Serra de Sintra. Este foi o percurso escolhido por António Poppe para a conversa de hoje, a primeira conversa andante desta sequela.

Além da natural proximidade geográfica, também afectiva, este é o roteiro quase diário do artista, poeta, performer, ou tudo isto em transformação, o permanentemente trânsito. Conta-me que dali costuma seguir floresta adentro rumo a um lago, já depois do Palácio de Monserrate, no coruto da montanha. “Vou caminhando ao que acontece”. Seguimos a partir do trilho da antiga linha de comboio. Estamos afinal a sair de “Gallamares”, vocábulo de “Alaga-Mares”, por chegar antigamente a maré a este lugar, inundando-se na enchente o vale por ela percorrido. O assoreamento da foz por via da acção humana, embarcações, a intensa rega dos pomares, são razões apontadas. Hoje sabemos que estas águas estão potencialmente, perigosamente, mais poluídas, entre adubos e resíduos, são preciosas e tanto mais escassas. Preciosa é também a vegetação de Sintra, florestas-relíquia húmidas. E só isso dava para fazer correr muita tinta.

Cruzamos o medronheiro que, “há umas semanas atrás, há duas ou três, estava cheio de medronho”, mas quem caminha na natureza percebe a sua constante transforma-mutação, a mágica impermanência de todas as coisas que compõem o universo. É este entendimento de um constante estado de fluxo, anicca, que Poppe transpassa no seu ser, fazer, artista, poesia, declamação, pessoa. “Quando estamos no meio do betão, não conseguimos olhar essa transformação”.

Começamos por falar da sua mais recente colaboração, estreada na Gulbenkian, com La Família Gitana, a saber: Ari, Rui, Leandro, Ângelo, Alexandre e Mário. Não fosse esta caminhada ter tido lugar um dia depois de se reencontrarem, aqui mesmo em Galamares, à volta da fogueira toda a noite a improvisar, tocar, cantar. “Ontem [com La Família Gitana] foi incrível, já não nos víamos há um mês. Há uma coisa no canto, no canto cigano, que é tão dizer mesmo aquilo que se tem a dizer para que saia, para que se veja, para se homenagear. É um espírito quotidiano, as letras são tão directas. Fico completamente em paz. É o transladar, uma alegria naquela forma de estar e de libertar. O Ari [guitarrista] faz tantas colagens de solos, de ritmos que vai buscar, e o poema aparece lá dentro. Isto tem muito a ver com a minha forma, também; é uma composição”. É neste peso de uma herança, a tradição de mãos dadas com o prazer da oralidade das narrativas, que a poesia de António Poppe brota e se funde, como é habitual quando o ouvimos declamar. “A linguagem na poesia tem de vir do sentido e da fonética; o que está a ser dito, a forma como está a ser dito”. Entre influências de Camões e textos do líder indígena Yanomami, Davi Kopenawa, juntam-se também textos da Índia, os Upanishad, ou poemas escritos com Mumtazz, vozes inspiradas em Ibra Galissa, Camarón de la Isla, Buika. São os universos em uníssono; colaboração; ser-se comunidade; a possibilidade de desalojar a violência. Pela intenção da palavra proferida? O gesto? “Firme determina ”. Conta-me que, “fazer arte com La Família Gitana é radical, da raiz. Uma raiz móvel. São o povo Cobra na Índia, que não se submeteu à guerra, então saiu do seu território e assimilou todas as culturas. A música reflete isso; foram agregando, integrando. Essa dignidade é muito real”.

Continuamos a subir. Novamente Mumtazz. Sempre Mumtazz, nome da artista Andrea Martha (1970-2019), a sobrevoar ao longo da caminhada. Evoca-a pela amizade, colaboração e partilha ao longo de décadas, da forma de ser e sentir a poesia. “A poesia fazia isso imediatamente, nós éramos capazes de chegar e começar a escrever, a falar, salvar o dilúvio do pranto, salvar o lírio do delírio…”. A liberdade e a alegria de criar. Participavam dessa vontade de síntese de todas as práticas e modos de expressão numa verdade artística que se confundia com a própria existência. Como lembra o retrato emoldurado na secretária [imagem 1], viveram juntos em Chicago; cidade para onde Poppe se muda para o mestrado de desenho e escultura, mas acaba a estudar performance  e cinema. Diz-me que é lá que começa a vocalizar a poesia. Poesia falada. Mas tudo se cruza. “Acho que cada um de nós não escolhe o caminho, o caminho vai abrindo essas clareiras. A vida tem sentidos, do próximo ao próprio sentido, e vamos atravessando. Quando há essa realização, na poesia isso acontece muito, mas também no desenho, na fotografia, o que seja. No fundo a arte é isso. A arte é vida”.

Já depois da fonte, e fora do trilho que se demarca, fazemos uma pausa junto a dois penedos. Vista sobre o vale, lembramos o sol de tarde que nos envolve e desta interdependência com o que nos rodeia. Tudo está em tudo. Partilhamos o gosto pela possibilidade de resgatar um lugar, um movimento. Um encontro sem um antes nem um depois. Que não surge no seguimento de um “que vi”, nem de um “a vir", “a ver até…”, a “não perder”. A possibilidade desse hiato temporal e expectativa(cional) interessa-me(nos) particularmente. Sem pretensão, mas na expectativa de avistar um pouco daquilo que é um universo artístico que se conforma pouco a categorizações, uma prática que se ergue na valorização de todos estes micro-cosmos, a disponibilidade à dúvida, ao improviso; às respirações.

Regressamos por fim para onde começámos, agora é sempre a descer e o silêncio pode finalmente tomar lugar para melhor se ouvir os caminhos da natureza. A importância dos caminhos pedestres [na natureza, por vezes também na cidade], já diversamente tratados ao longo da história da arte, que poderemos mentalmente homenagear. Homenagear por fim, e no início, uma ecologia maior, a vitalidade e esperança que o ambiente sempre apresenta, renova. A respiração do mundo que é preciso cuidar. Como fala Kopenawa, “A floresta tem um sopro de vida muito longo, é a sua respiração (…). O sopro dos humanos, ao contrário, é muito breve. Vivemos pouco tempo e morremos depressa. Já a floresta, se não for destruída sem razão, não morre nunca. Ela não apodrece para depois desaparecer. Sempre se renova. É graças à sua respiração que as plantas que nos alimentam podem crescer. Então, quando estamos doentes, às vezes tomamos seu sopro de vida emprestado, para que nos sustente e nos cure. (…) A floresta respira.” [pág. 472, Davi Kopenawa & Bruce Albert, in Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami].

Todas as citações são de António Poppe e foram gravadas durante a caminhada de 12 de Janeiro 2022.
Este texto foi  escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico. 

Este artigo foi publicado ao abrigo da nossa parceria com a Umbigo Magazine. A UMBIGO é uma plataforma independente dedicada à arte e cultura, que inclui uma revista trimestral impressa, uma publicação online diária, uma rede social virada para arte e um programa de várias atividades de curadoria.

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