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Ensaio sobre um lugar

Por

 

Guilherme Gomes
October 7, 2022

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Ensaio sobre um lugar

Ela está sentada numa cadeira castanha, no centro da sala. Nós estamos atrás das duas mesas compridas onde nos sentamos a ler. Ela tem o olhar baixo e as mãos no colo. O silêncio é inviolável. Alguns com os cotovelos apoiados na mesa; outros encostados para trás; o elenco todo com os olhos nela. Esperam que consiga encontrar e habite o lugar das palavras que haverá de dizer não tarda.

E, então, ela diz Há muito tempo, já não saberia dizer, há tanto tempo que aqui estou. Habituei-me a estas paredes, a esta janela, à paisagem da Flandres que tão calmamente se arrasta até ao horizonte. Por uns momentos tu acreditas, sentado nesta sala de ensaios em Lisboa, que há uma janela que dá para a paisagem espalhada da Flandres, mesmo que não saibas ao certo o que imaginar. Ali está ela, que, por meio de palavras e de uma certa maneira de estar, te abre a possibilidade para transformar o olhar.

Então, tu dás por ti a agradecer à sorte por, para além de estar diante de uma actriz virtuosa, que encarna desta forma o milagre do teatro, poderes estar com ela nesta sala, com este silêncio, e este tempo todo para que ela se coloque no lugar que palavra promete. Olhas de soslaio para o elenco; observas como eles assistem ao ensaio da actriz.

Então, tu dás uma indicação em voz baixa: pedes que um dos actores se junte a ela.

Ele levanta-se da cadeira, contorna a mesa, e aparece diante dela, cuidadosamente, como se não a quisesse interromper. Mas ela cala-se, e olha para ele. Quando recomeça o texto, alguns dos colegas de elenco riem: a natureza do discurso mudou. O que antes parecia ser um pensamento em voz alta, tornou-se, de repente, uma espécie de repreensão que ela lhe dava Se aos homens da Flandres não lhes faltasse a vontade, e a coragem de assumir o que tem de ser assumido, eu não teria de dizer estas palavras; que, no seu conjunto, representam muito mais do que qualquer rei ou embaixador algum dia fez, porque, no seu conjunto, são um pensamento, uma tomada de consciência; e dizê-lo em voz alta, mesmo quando ninguém está a ouvir, é afirmá-lo; é fazer aparecer os ramos que podem servir de enxerto para o que na minha ideia se semeou.

A cena é divertida, e ela encontra novas subtilezas no discurso e na relação com ele. Ele serve a cena sem defeito. Estão a brincar um com o outro, e a cena resulta porque a cumplicidade entre os dois é real. E, como não há espaço senão a sala de ensaios, a sala transforma-se de novo; parece um quarto num qualquer palácio real, há talhas douradas e lençóis finos. Podes imaginar um grande retrato ao fundo. E já não importa se a paisagem se arrasta, porque quem se arrasta são os homens, de que ele serve de mandatário na presença dela. O que parecia uma cena inconsequente, ganha a força de uma convicção activa, um aviso político, uma medição de forças.

Então, tu pedes que mais pessoas se juntem. Duas ou três bastarão. E três actrizes levantam-se do seu lugar, e colocam-se em cena. Por instinto organizam-se em grupos: uma delas parece indicar ao actor o caminho da porta; as outras, em parelha, soltam francas gargalhadas ao ouvir as palavras da primeira actriz. E a cena transformou-se, de novo: passou a ser uma cena vaidosa, talvez um jogo amoroso. E a actriz faz-se às gargalhadas das outras. E ele, cada vez mais sozinho em cena, como que se afunda. Agora, o espaço poderia ser um jardim num dia de verão. Um dia folgado, dilatado.

Então, pedes que toda a gente se junte em cena. Depois de um primeiro momento de hesitação, o elenco parece formar um grande bloco de juízes; com a excepção das duas raparigas que se riam, ainda agora. A cena mudou: o discurso tornou-se público, assumidamente político. Há uma certa desolação nesta personagem que acusa o senado, o tribunal, a população, o que quer que seja este grupo de pessoas. E o espaço é o de um hemiciclo, ela ocupa uma tribuna e ao falar implica-se.

Tudo isto foi possível porque havia tempo, disponibilidade e lugar, pensas de ti para ti enquanto arrumas as coisas, depois do ensaio, e se despedem todos. A onde podemos chegar quando temos estas condições. O requinte do trabalho destes intérpretes depende da reunião destas condições. Se tivessem a sala por horas contadas; se ao terminar o ensaio houvesse já algum elemento de outra equipa que abria a porta, julgando que já era o momento do seu ensaio, para depois a fechar com um pedido de desculpa, se se ouvissem constantemente os ruídos da rua, se a sala fosse ainda mais fria, ou não tivesse esta luz, e não tivesse este chão, se não pudessem estar aqui sem pensar em mais nada, como seria possível fazer nascer primeiro uma janela, depois um quarto, um jardim, um parlamento?

Imagem gerada por inteligência artificial com recurso ao Dall.E

BREVES CRÓNICAS DO TEMPO são pequenos episódios, registos, princípios de reflexão pelo dramaturgo Guilherme Gomes.

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