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A 5 de Agosto de 2012, Nuno Pacheco dava conta no jornal Público da noção de silly season: ““Só deram por isso no século dezanove, mas deve ter sido sempre assim. Por causa do calor ou do cansaço do resto do ano, Agosto e Setembro ganharam o epíteto “silly season”. “Silly”, sim, de parvo, pateta, estúpido, disparatado, imbecil, absurdo. Quem consultar a Wikipedia ficará a saber que em Inglaterra esse período é descrito no Brewer’s Dictionary of Phrase and Fable como “a parte do ano em que o Parlamento e os tribunais não estão a funcionar”. Por cá, diz (por exemplo) o Dicionário Inglês-Português da Porto Editora, é “a época do ano em que os jornais se ocupam de ninharias, à falta de assuntos importantes” (PACHECO, Nuno, 2012, «Por Que Serão Estes Meses Sempre Assim?”, in Porque Sim, Daniel Sampaio (org.), O Público: p. 40).
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Um comportamento genérico destas épocas excecionais e, em específico, do intervalo silly, é o registo fotográfico dos momentos, na atitude de catalogar insistentemente os instantes vividos, de gerar memória. Enquanto se dança, enquanto se bebe ou se come, antes e depois do banho, no banho, no barco, na água turva, na água límpida, na de ondas, na montanha, no campismo, no festival, no shopping, nas feiras de Agosto, todos os momentos parecem prometer um instante especial que merece ser fixado e que se quererá mais tarde recordar (não se percebe muito bem porquê). É assim hoje e desde há muito tempo, talvez com mais intensidade desde os anos 80/90, filhos dos cravos de Abril, a partir do momento em que o estado democrático permitiu a cada uma das pessoas a liberdade de catalogar a sua própria história e a contar sem receios ou penalidades. Se nesses anos a descoberta do registo fotográfico pelo cidadão comum serviu uma abundante catalogação dos momentos, que se deveu ao facto da fotografia analógica estar para toda e qualquer pessoa, agora, com a passagem para a fotografia digital e as posteriores aplicações que permitem transformar, cortar, focar, desvanecer e retocar, assistimos à facilidade de fotografar tudo em todo o lado e a tempo inteiro sem preocupação de ruído, flash ou do fim do rolo, para além de uma multiplicação dos formatos de registo.
Hoje, por força da tendência de fixarmos uma imagem de nós próprios ou da nossa vida a todo o momento, verificamos que aquela fotografia do verão de 1998 parece corporizar melhor aquilo que entendemos por memória que as do verão de 2019, e não é só porque as primeiras estão mais distantes – isto é, há um pendor para a fotografia digital existir no momento em que é tirada para, algum tempo depois (pouco), já não ser lembrada, dada a acelerada informação imagética de que somos cúmplices, enquanto que a fotográfica analógica, por sobreviver no papel e numa conjuntura em que os registos de imagem ainda não estavam tão democratizados, oferece-se como um objeto que representa uma dada recordação (a visita às Grutas de Mira de Aire, por exemplo) ao mesmo tempo que é a recordação em si (a revelação em papel) – como se a fotografia analógica permitisse a recordação e a digital facilitasse o esquecimento.
A propósito desta migração da analógica para a digital, Byung-Chul Han diz-nos que “(…) o meio digital transforma os raios de luz em dados, ou seja, em relações numéricas. Os dados não possuem luz. Não são claros nem escuros. Interrompem a luz da vida. (…) A fotografia digital não é uma emanação, mas uma eliminação do referente. Não tem uma ligação intensa, íntima, libidinal com o objeto.”, e continua “A fotografia analógica como meio de memória conta uma história, um destino. Rodeia-a um horizonte romanesco: <possível que Ernest, o pequeno aluno de escola fotografado por Kertész em 1931, ainda hoje esteja vivo (mas onde? como? Que romance!).>> A fotografia digital não é romanesca, mas episódica. O smartphone faz surgir uma fotografia sem profundidade temporal, sem extensão romanesca, uma fotografia sem destino nem memória, isto é, uma fotografia momentânea.” (HAN, Byung-Chul, 2021, Não-Coisas, trad. Ana Falcão Bastos, Lisboa: Relógio D’Água, pp. 39 e 40).
O estatuto que a fotografia analógica assegura como objeto de memória compromete a facilidade da fotografia digital criar um registo do futuro e, por isso, transforma a nossa ideia de História do porvir:
“Uma memória é um certo conjunto, um certo arranjo de signos, de vestígios, de monumentos. O túmulo por excelência, a Grande Pirâmide, não guarda a memória de Quéops. É em si mesmo essa memória. Dir-se-á, provavelmente, que tudo separa dois regimes de memória: de um lado, o dos poderosos governantes do passado – alguns dos quais só têm de real o cenário ou o material das suas sepulturas; do outro, o do mundo contemporâneo, que, ao invés, não cessa de registar os testemunhos das existências mais comuns e dos acontecimentos mais banais. Quando a informação é abundante, supõe-se que a memória transborde. Ora, a atualidade mostra-nos que tal não acontece. A informação não é memória. Não acumula em prol da memória, antes trabalha para o seu próprio interesse. E o seu interesse é que tudo seja esquecido de imediato, para que só se afirme a verdade abstrata do presente e que o seu poder seja afirmado como o único adequado a essa verdade.” (RANCIÈRE, Jacques, 2014, A Fábula Cinematográfica, trad. Luís Lima, Lisboa: Orfeu Negro, pp. 255 e 256).
É nesta constatação que encontramos uma leve fábula das nossas vidas: estar em silly season, que é o mesmo que dizer que enfrentamos o severo destino da impossibilidade de recordação, de revelação, na contemporaneidade e sob o caráter ofuscante da nossa alienação. Não obstante, e se assim é, resta-nos percecionar que fórmulas podemos encontrar para fixar as nossas (H)história(s).
Se a digitalização das nossas imagens serve a instantaneidade dos momentos e os chuta para um imbróglio de memórias que se esvanecem com as trovas que passam, que histórias podemos hoje escolher contar, dada a sua permeabilidade, mas também a infinita possibilidade da nossa ação de concretizá-las? Aliás, que História nos interessa contar? Que acontecimentos nos interessa registar com o intuito que não se repitam? Que identidades escaparam até hoje à História e agora encaram uma circunstância que lhes dificulta a inscrição e a existência?
“Uma garrafa de Stolichnaya, não é o símbolo para a vodka, nem para o álcool, muito menos para a Rússia.” (in DarkTourism, 2013, enc. SillySeason)
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Abram bem os olhos. Agora fitem este pêndulo. Não parem de fitá-lo com o olhar. O vosso olhar começa a humedecer-se. Estão a ver tudo muito turvo. Estão a começar a sentir sonolência e apatia? Não desistam. Conseguem ver para além dessa fumaça? Conseguem perder-se no labirinto de espelhos? Agora repetimos tudo outra vez, mas de olhos fechados. Oiçam apenas o som da nossa voz: Isto é tudo smoke and mirrors. Uma rubrica dos SillySeason em parceria com o Coffeepaste, na eminência dos perigos hipnóticos da sociedade atual.
Foto: João Porfírio
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