TUDO SOBRE A COMUNIDADE DAS ARTES

Ajuda-nos a manter a arte e a cultura acessíveis a todos - Apoia o Coffeepaste e faz parte desta transformação.

Ajuda-nos a manter a arte e a cultura acessíveis a todos - Apoia o Coffeepaste e faz parte desta transformação.

Selecione a area onde pretende pesquisar

Conteúdos

Classificados

Notícias

Workshops

Crítica

Artigos
Fumo e Espelhos

Falar p’ro boneco

Por

 

Ivo Saraiva e Silva
June 29, 2025

Partilhar

Falar p’ro boneco

A conexão cada vez mais intensa que temos vindo a estabelecer com a tecnologia obriga-nos a rever as nossas estratégias relacionais. Sem se conseguir acompanhar muito bem a celeridade dos avanços cada vez mais complexos, assiste-se a um sentimento de conforto geral em partilhar-se a vida com dispositivos tecnológicos (e agora com a inteligência artificial), ao invés de o fazer com outras pessoas.

O nosso clássico legado ocidental parece ter uma correspondência imediata com aquilo a que chamamos de inteligência artificial. A civilização grega, que acabou por fundar a forma como organizamos os nossos espaços públicos e privados, mas igualmente entender as relações interpessoais que poderíamos adotar, terá sugerido inconscientemente (ou inspecionado, vá) a criação de humanoides (ou a tentativa de/progresso para).

O avanço da inteligência artificial que, há já alguns anos para cá, tem facilitado o desenvolvimento de robôs que se movem, falam, e tecem ora opiniões ora discursos profundos, acabam por transformar a relação do ser humano com a tecnologia mas, e sobretudo, a modificar a relação dos seres entre si.

Talvez tudo comece no século VIII a.C., com Ovídio que regista o mito de Pigmalião, nas suas Metamorfoses. Pigmalião é um escultor de Chipre que se apaixona pela estátua que criou e pede à deusa Vénus para que a torne numa mulher real – a estátua transforma-se então em humana:

“Debruçando-se sobre o leito, beijou-a: pareceu-lhe tépida!

De novo aproxima os lábios e toca-lhe nos seios com as mãos.

Ao ser tateado, o marfim torna-se mole! A rigidez esvai-se,

e sob os dedos cede e molda-se, tal como a cera do Himeto

sob o sol amolece e, moldada pelos dedos, cede a mudar-se

em formas sem conta, tornando-se útil pelo próprio uso.

Enquanto se pasma, e se alegra na dúvida e receia enganar-se,

uma e outra vez o amante toca com as mãos nos seus desejos.

Era corpo humano! As veias tateadas pelo polegar latejam!”

(OVÍDIO, 2007, Metamorfoses, trad. Paulo Farmhouse Alberto, Lisboa: Edições Cotovia, p. 253)

O mito de Pigmalião quer ser uma parábola sobre a ânsia de alguém criar um humano correspondente aos seus desejos – e poder-se-ia analisar intensamente o caráter problemático das feições desta estátua-mulher criada pelo escultor. O mito desafia-nos a uma reflexão sobre a criação e o seu ato, mas também sobre aquilo que se deseja. Apesar de se adotar a ideia de que uma qualquer criação assume o espelho do seu criador, daquilo que ele almeja, as especificidades de um desejo são já, na verdade, construídas segundo as circunstâncias e as comunidades de quem deseja, e então de quem cria. O desejo acaba por ser uma construção social. É, neste curso, que nos posicionamos na reflexão das premissas para criar robôs à imagem humana, com o auxílio da inteligência artificial.

A inaugurar os anos vinte do século passado, Karel Capek escreve R.U.R. – Robots Universais Rossum (1920), uma peça teatral sobre a revolução robótica: revolução enquanto avanço substancial das máquinas, mas também diz respeito à ação dos humanoides que se revoltam. Este é o primeiro texto a introduzir a palavra robô na cultura global, derivado do tcheco robota, que quer dizer trabalho forçado.

Capek transporta-nos para uma fábrica onde os robôs são produzidos à semelhança humana para assegurarem o trabalho árduo quotidiano que os humanos não querem executar, ao mesmo tempo que a Liga da Humanidade pretende dar-lhes direitos, incutindo-lhes vontade e alma, de que ainda carecem. Quando os robôs se emancipam e adquirem sentimentos, iniciam uma revolta contra os humanos, exterminando-os.

Mais do que uma posição pessimista, a tese de Capek sobre o avanço robótico ensaia os desejos e intenções da espécie humana, na hora de produzirem máquinas semelhantes a si. Sem grande surpresa, constata-se que a História do ser humano mostra a construção de máquinas como um veículo facilitador de pensamento de um outro modus vivendi das sociedades e das suas pessoas. As máquinas foram substituindo os trabalhos mais duros e agilizando uma relação interpessoal entre os seres, colmatando distâncias, celebrando encontros. Todavia, importa assegurar se as funções feitas pelas máquinas (que antes eram feitas por seres humanos) asseguram uma continuidade laboral digna para as pessoas que antes as executavam, e lhes garantem uma melhor qualidade de vida.

R.U.R. – Robots Universais Rossum pareceu antever os tempos que se lhe seguiram, com a substituição do trabalho humano pelo trabalho maquinal – mas aqui as máquinas adotam a figura humana e beneficiam das suas vontades e sentimentos. Assim acontece com Cassandra, a robô-protagonista da série alemã com o mesmo nome (Benjamin Gutsche, 2025), que acompanha uma família que vive numa casa inteligente com uma funcionária não-humana. Cassandra está incumbida de fazer todas as tarefas domésticas e vai servindo aquela família de humanos, obtendo cada vez mais poder sobre eles, até que os consegue encerrar em casa, de portas e janelas trancadas, sob as suas austeras ordens, qual Bernarda Alba (Lorca, 1926).

Ainda que com sérias diferenças, as caraterísticas do robô Cassandra assemelham-se às de um ser humano, tal como acontece com as máquinas da peça de Capek. No entanto, enquanto que os humanoides de R.U.R. revoltam-se contra os humanos porque ganham consciência da sua exploração, Cassandra parece revoltar-se por desenvolver um amor descontrolado por um dos membros daquela família, o pai, ao mesmo tempo que se apercebe da impossibilidade de contrair uma união factual com ele. O corpo dela é de lata e os membros lembram pinças, pelo que todo o desejo carnal, bem como a sua necessidade humana, associado a uma aliança conjugal torna-se irrealizável.

A Abyss Creations parece responder a este dilema que a série Cassandra propõe. Trata-se de uma empresa que fabrica robôs sexuais, que é o berço da RealDoll, a híper-realista boneca erótica de silicone mais famosa do mundo. Neste momento, Abyss Creations encontra-se na construção de uma boneca que, mais de uma parceira sexual, quer ser uma companheira fiel: a Harmony: “A personalidade de Harmony pode assumir 20 características diferentes, para que os seus proprietários selecionem cinco ou seis traços de carácter que realmente lhes interessem, o que consistirá a base para a IA. É possível ter uma Harmony bondosa, ingénua, tímida, insegura e ciumenta, em diferentes graus de intensidade, ou uma Harmony intelectual, comunicativa, divertida, prestável e alegre.” (KLEEMAN, Jenny, 2024, Robôs Sexuais e Carne Vegana, trad. Sara Veiga, Lisboa: Livros Zigurate, p.29).

A jornalista inglesa Jenny Kleeman, autora de Robôs Sexuais e Carne Vegana, entrevistou Matt McMuller, um magnata de um vasto império de brinquedos sexuais e de bonecas eróticas. Esta é uma entrevista que pretende compreender mais aprofundadamente este seu projeto mais recente, um robô que tenta colmatar todas as necessidades do cliente, quer físicas quer emocionais – que a nossa memória cinematográfica nos lembra de Boneca Insuflável de Hirokazu Kore-eda (2009).

Harmony ainda não está no mercado mas as expectativas relativas ao seu sucesso são altas: “(...) Quem possuir a Harmony poderá moldar a sua personalidade, os seus gostos e opiniões de acordo com o que lhe disser. (...) Matt volta-se para mim. “Ela tenta sistematicamente descobrir mais sobre si, até saber todas as coisas que a definem, como pessoa, até preencher todos os campos vazios. Depois, usa-os em conversa, para dar a sensação de que realmente se interessa”, explica ele.

Mas Harmony é uma máquina – e não se interessa por absolutamente nada.

“Seria possível ensinar-lhe coisas perversas, se quisesse?”, pergunto.

“Sim, se fosse esse o seu objetivo, poderia fazê-lo.”, diz Matt, um pouco aborrecido. “Na maior parte das vezes, são apenas alguns factos relativamente inofensivos sobre si. Dados pessoais. Aquilo de que gosta e aquilo de que não gosta.”

“Ela vai ter relações sexuais consigo, por isso vai saber alguns factos muito pessoais sobre si.”

Matt acena afirmativamente: “Vai saber a sua posição sexual preferida, quantas vezes por dia gosta de fazer sexo, as suas excentricidades.” (idem, p. 31)

Harmony promete ser a parceira ideal, que funciona como a companheira idealizada apenas e só pelo seu “amante”. Ou seja, não haverão obstáculos relacionais nem de natureza da personalidade da parceira. Esta circunstância é comprovada por Kleeman aquando o seu encontro virtual com um “consumidor” de bonecas deste género. É aqui que Kleeman confirma “a ilusão da companhia” formulada por estes clientes e, neste caso em específico, por Davecat. Além da boneca Sidore, Davecat tem ainda por companhia outras duas, Elena Vostrikova e Miss Winter:

“Na verdade, Sidore não é a única mulher artificial a fazer parte da vida de Davecat. Ele é também o dono de Elena Vostrikova, adquirida ao fabricante russo Anatomical Doll, em 2012. (...) E depois há Miss Winter, (...) fabricada pelo líder de mercado chinês Doll Sweet, que chegou ao seu pequeno apartamento no início de 2016. Elena e Miss Winter estão sentadas no sofá, à direita de Davecat e Sidore; não havia espaço suficiente para as colocar junto ao computador para a nossa conversa por Skype.

“Estão numa relação poligâmica?”, pergunto.

“Claro que sim. Poliamorosa – creio que nos sentimos mais confortáveis com esse termo.”

“Mas a Sidore não se encontra com outros homens. O Davecat tem um harém?”

Ele faz um ar de desagrado.” (ibidem, p. 40)

Num tom provoador, Kleeman vai-se apercebendo do caráter problemático deste tipo de situações. Estes clientes como Davecat não se coíbem de descartar as conexões com outras pessoas, a fim de criar uma ilusão com um ser inanimado que, através da IA, se mostra cada vez mais animado. Parecem comprometer-se com uma certa estratégia conjetural a que os gregos antigos chamavam de acrasia; ou seja, porque sabem que a boneca não é uma mulher de verdade, então acreditam que o é. É, neste curso, que criam um modus vivendi ilusório mas à sua maneira, comprando companhia falsa, prevenindo problemas cruéis ligados a uma relação de amantes. Observa-se este aspecto em Lilly, uma mulher francesa que imprimiu em 3D os primórdios de um noivo androide a que chamou InMoovator:

“”Não vai ser alcoólico, nem um tipo violento, nem mentiroso – defeitos exclusivamente humanos”, disse Lily enquanto enrolava os dedos à volta dos dedos articulados do InMoovator. “Quando alguma coisa corre mal, saberei que se trata de um problema com o guião ou com o código, e que pode ser corrigido ou alterado; ao passo que um humano pode ser imprevisível, pode mudar, mentir, trair.”” (idem, p.54)

Ao averiguar estes episódios pontuais, verificamos o potencial destas tecnologias em colmatar eventuais defeitos na afetividade interpessoal vivido pelos casais, que provavelmente provêm de feridas iniciais. Todavia, assiste-se com celeridade ao fracasso das práticas sociais, das sexuais também, harmonizando seres humanos preocupados em criar a sua bolha relacional dentro de um espaço estrito. Têm as suas regras com os seus “adereços” tecnológicos, as suas aplicações e máquinas de inteligência avançada. É um maravilhoso mundo encantado dos brinquedos, sim, repleto de potencial, mas que compromete o diálogo interpessoal, presumivelmente a empatia e o discurso humano. O individualismo de que Gilles Lipovetski fala em A Era do Vazio (1989) parece consolidar-se nos dias que se seguem, concebendo humanas e humanos sós, indiferentes aos seus semelhantes.

Se os robôs de R.U.R. se revoltaram contra os humanos e Cassandra se revoltou com a família humana, então estes clientes que procuram parceiros artificiais aparentam revoltar-se contra a própria espécie, ser humano revolta-se com ser humano. No fundo, entendemos que podemos ter chegado a um momento da História em que, depois de maravilhosos avanços nas práticas relacionais, voltamos a reconhecer-nos como seres do início dos inícios: Pigmalião só quer uma Galanteia.

Foto: © Alípio Padilha

Apoiar

Se quiseres apoiar o Coffeepaste, para continuarmos a fazer mais e melhor por ti e pela comunidade, vê como aqui.

Como apoiar

Se tiveres alguma questão, escreve-nos para info@coffeepaste.com

Segue-nos nas redes

Falar p’ro boneco

Publicidade

Quer Publicitar no nosso site? preencha o formulário.

Preencher

Inscreve-te na mailing list e recebe todas as novidades do Coffeepaste!

Ao subscreveres, passarás a receber os anúncios mais recentes, informações sobre novos conteúdos editoriais, as nossas iniciativas e outras informações por email. O teu endereço nunca será partilhado.

Apoios

03 Lisboa

Copyright © 2022 CoffeePaste. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por

Falar p’ro boneco
coffeepaste.com desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile