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O espectáculo é um acidente

Por

 

Guilherme Gomes
August 26, 2022

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O espectáculo é um acidente

Lembro-me: entrou depressa em cena. Não, lento. Sim, entrou lentamente; mas esse momento passou tão depressa, não dei por isso. E quando ele caiu nos braços dela, depois de se atirar, de – não, não foi assim. Como é que aconteceu? Eu lembro-me de o ver nos braços dela, mas não me lembro de como lá chegou. A memória está a trair-me. Peço desculpa, meritíssimo, não sei se estou em condições de – não sou uma boa testemunha do que aconteceu.

Muito escuro, e pouca gente. No Teatro Viriato, e eu não devia ter mais que quinze anos. Lembro-me de que os corpos, em cena, estavam iluminados por uma luz azul; e que estavam quase despidos, com roupas sujas, trapos. Não sabia nada de nada, mas tinha de haver qualquer coisa naquelas pessoas, naquele estar em cena, qualquer coisa no que via ali, naquela noite perdida dos meus quinze anos. Não sobreviveram grandes pormenores; mas quando me lembro, é como se tivesse visto o espectáculo deitado no chão, muito próximo dos intérpretes. Por outras descrições que vou ouvindo, tudo me leva a crer que era Fragments, de Peter Brook a partir de Samuel Beckett. Mas, mesmo isto é difícil de garantir. Passou demasiado rápido, e não o pude rever. Aconteceu, um dia, na minha vida: estive perante aquelas pessoas, aquela luz, aquelas palavras. Aconteceu-me um dia, estar perante aquele espectáculo. Aconteceu-me como outras coisas únicas e irrepetíveis me aconteceram, e que, quando me pedem para recuperar, hesito.

Lembro-me: há um pequeno livro do Jean Cocteau chamado Portrait de Mounet-Sully. Neste livro Cocteau tenta fazer um retrato daquele que nos apresenta como um gigante do palco da Comédie-Française, na transição do século XIX para o século XX.

Eu adorava… gostava… seria preciso que tirar de si todo o encarnado do sangue, toda a noite da alma para evocar em carne e osso o magnífico fantasma que assombra os corredores e os bastidores deste teatro: Mounet-Sully!

Cocteau começa assim, introduzindo o leitor a este conflito: como se recupera a memória de um actor? E que ferramentas temos à mão para resgatar o inominável?

Não ficamos surpreendidos quando, mais adiante no livro, damos com Cocteau a reflectir sobre o que é o teatro, e a relação do público com os espectáculos. E, então, ele escreve:

O teatro é o Guignol. Guignol transporta a semente do teatro. Tenho dito muitas vezes que o melhor público do mundo seria o público que, tal como as crianças gritam a Guillaume: “A polícia! Está aí a polícia”, gritaria a Édipo: “Olha bem para Jocasta! Não te cases com ela. Ela é a tua mãe”!

Perder a infância é perder tudo. É duvidar. Significa olhar para as coisas através de uma névoa que desfoca, feita de preconceitos e cepticismo. Uma boa sala de teatro representa, entendida como um todo, uma criança de doze anos que importa segurar com risos ou lágrimas. Não me envergonho, portanto, de confessar que tudo o que me resta de Mounet-Sully é uma imagem da minha infância.

Esta criança de doze anos também pode ser uma boa metáfora, senhor Cocteau, para o lugar de testemunha. Este lugar em que vemos e somos ignorantes ao mesmo tempo. Em que assistimos a algo e não sabemos ainda o que destacar, o que ver, como reagir. Porque é tanto o espanto, ou o medo, ou é tanta a confusão. E, quando nos lembramos, sabemos que nos lembramos apenas de parte.

Na qualidade de testemunha somos crianças de doze anos, para quem algo pode ser incompreensível, ou muito mais do que é. Somos susceptíveis a tanta coisa: o calor na sala, o veludo (ou a sua ausência) das cadeiras, o tempo que passa, a palavra que nos escapa, o gesto que tem para nós um significado íntimo. Um amigo que filma espectáculos por profissão conta que, por vezes, chega a casa com a sensação de ter visto um bom espectáculo, mas confrontado com o que filmou não reconhece a sua experiência. Um espectáculo é um acidente: no rescaldo, será como um acontecimento que testemunhámos, um destes que se destacam de outros acontecimentos quotidianos pela responsabilidade que sentimos por realmente ter acontecido qualquer coisa diante de nós, e ser preciso responder por isso. Foste ao teatro? O que viste? Como foi? Então, viste-o ao vivo! É tão bonito como nas fotografias? E o que é que ele disse? E sobre o que era o espectáculo?

E haverá quem tenha a curiosidade de saber, por não ter estado; e quem queira cruzar a sua percepção com a nossa. E haverá quem tenha visto um outro espectáculo, e quem tenha rido quando tu choraste. E haverá conflitos na descrição do acontecimento, e Ela não falava assim, não foi isso que ela disse: as palavras não correspondiam à expressão corporal, como é que não o percebeste? Como é que não viste que quando ela disse que estava triste, mentia?

Talvez tudo isto resulte de um outro jogo: também para os intérpretes o espectáculo é um acidente. Ali, no palco, há a rotina e tudo o que está marcado. Há as palavras decoradas, e os efeitos de luz com o tempo constante. Mas também lá está a incerteza: seremos capazes de chegar ao fim do espectáculo? Quando começamos, nada nos garante. E, no caminho para lá chegar, seremos surpreendidos de récita para récita. Nunca um espectáculo foi igual a outro. Todos os espectáculos foram tentativas acidentadas de um outro espectáculo nunca realizado, aquele ideal, o que nos serve de referência. Aquele de que o público nunca verá senão as nossas acidentadas reproduções.

Foto: Imagem criada por inteligência artificial com recurso ao programa Dall.E

BREVES CRÓNICAS DO TEMPO são pequenos episódios, registos, princípios de reflexão pelo dramaturgo Guilherme Gomes.

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