Problemas na composição da lágrima

Por Keli Freitas

Descobri há pouco tempo que meu pai está com uma coisa chamada síndrome do olho seco. É algo relacionado a problemas na composição da lágrima, ou produção deficiente de lágrimas. Que o meu pai teria produção deficiente de lágrimas não era difícil desconfiar. O que eu nunca imaginaria era essa síndrome, que tem esse nome mas funciona ao contrário: o olho, por estar seco, se ressente com o atrito da pálpebra na córnea e provoca um aguaceiro constante, que desce rosto abaixo qual rio caudaloso e que impressiona 7 vezes mais que qualquer pranto de perda do grande amor.

Da última vez em que almoçamos juntos, meu pai esqueceu de levar o colírio que estabiliza a falta de lágrimas e chorou o almoço inteiro. Mesmo sabendo que aquilo não passava de um incidente estritamente oftalmológico, fiquei um pouco transtornada, e um tanto quanto comovida.

Ele contava do aniversário de 90 anos da tia Beú e as lágrimas lhe caíam pelos olhos. Comentava o novo emprego do filho da Fátima em Belo Horizonte e as lágrimas lhe caíam pelos olhos. Explicava onde era o novo viaduto que estão construindo e as lágrimas lhe caíam pelo olhos. Pedia ao garçom mais uma Coca-Cola com gelo e limão se faz favor e as lágrimas lhe caíam pelos olhos. Lia o menu das sobremesas e as lágrimas lhe caíam pelos olhos. Procurava moedas para pagar o estacionamento e as lágrimas lhe caíam pelos olhos.

Ainda não havia pandemia.

Foi um pouco dolorido. Porém até lindíssimo.

Keli Freitas (1983, Brasil) é criadora, dramaturga e actriz.
Graduada em Letras pela PUC-Rio e mestranda em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa.

Esta iniciativa resulta de uma parceria Coffeepaste / Prado. A Prado é uma estrutura financiada pela DGArtes / Governo de Portugal para o biénio 2020/2021.