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Servir à Mesa ou Os Mandatários dos Sonhadores

September 23, 2022

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Servir à Mesa ou Os Mandatários dos Sonhadores

Ainda no outro dia, num encontro com o Nuno Leão, da companhia Terceira Pessoa, falávamos sobre a implementação de projectos no território. Eu comentei qualquer coisa sobre a responsabilidade da continuidade. Que um projecto que acontece e desaparece poderá ficar na vida das pessoas que se cruzaram com ele como um amor de verão, aquele verão a que nunca mais regressaremos. E que, em última instância, isso poderia resultar numa desilusão. Defendi que, um pouco ao jeito do que Saint-Exupéry escreveu naquele clássico, somos responsáveis pelas pessoas que cativamos. Mas o Graeme Pulleyn, que também estava presente, sensatamente respondeu que há espaço para tudo. E este pequeno comentário mergulhou-me em pensamentos, ali.

De facto, não parece obrigatório que um projecto deva ser continuado. Pelo menos, não devemos assumir que o deve ser, logo de início. Lembro-me de uma conversa com a professora Maria João Brilhante, na Faculdade de Letras de Lisboa, há uns anos, em que a professora me falava de companhias de teatro ao longo dos anos 1990 que duravam três ou quatro anos; companhias que não tinham vingado nessa continuidade enquanto projecto de companhia, mas que tinham sido importantes para a criação de novas linguagens, ocupação de novos lugares, lançamento de novas pessoas. E, pensando nisto, somos levados a crer que sim: de facto, há espaço para tudo. Há projectos que são amores de verão. Projectos que nos acontecem e semeiam em nós as coisas futuras. Há projectos cuja vitalidade é tanta, que será difícil de manter durante muito tempo. Há projectos que são corredores em velocidade e outros que são maratonistas.

A continuidade de um projecto, tal como um maratonista, pode depender da capacidade de gerir a sua vitalidade. Lembra um pouco o princípio daquele poema do Ruy Belo:

Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará


Trocando a tristeza por outra coisa, ou nem isso, aquele que administra, fá-lo com qualquer coisa que já existe, não com nada que tenha de inventar. A sua tarefa é a de o fazer sabiamente. Continuamos um projecto porque ainda é importante fazer, porque ainda há sonho, ou vontade, ou urgência, não por uma inércia que vem do porque já se faz. Ao longo da sua vida, um projecto volta a inventar-se, ganha novos significados, fala de maneiras diferentes, transforma-se, e tem, mesmo com todas estas alterações, um fundo que é só seu, um pilar, uma ideia, uma origem.

Mas falo de tudo isto, para introduzir o seu contrário. E valerá a pena? Sim, para provar o argumento de que a continuidade não é um dado adquirido, de que deve ser questionada. E para podermos tomar consciência de que a vitalidade de um projecto não depende apenas da sua direcção artística. Não a devemos isolar no gabinete do último andar, não nos devemos afastar dela. Idealmente estamos uma hora ao telefone com ela, quando nos encontramos tomamos um café, conversamos sobre coisas que ultrapassam o espectáculo que nos une, são a substância da vida em comunidade, reflectimos sobre os primeiros minutos de um espectáculo a que assistimos, contamos piadas, partilhamos inquietações, sonha-se com a arquitectura ideal para edifícios teatrais. É uma relação humana, parece-me um bom terreno para os objectos artísticos nascerem.

Mas em pouco tempo de trabalho numa estrutura de criação, já conto com pelo menos três histórias que correram particularmente mal. Em todas, um elemento comum: estruturas muitíssimo burocratizadas, em que o diálogo com as pessoas responsáveis é difícil, não por um qualquer desencontro artístico, mas por uma barreira de hierarquias que transformam os espectáculos, os espectadores, os artistas, todos os colaboradores, e a direcção artística em  abstracções estatísticas. De certa maneira, o problema, sempre que houve, foi um problema de escala – e de uma espécie de ilusão: pequenas companhias como a minha – e outras de que vou sabendo – olhadas como elementos dispensáveis e, de certa maneira, impotentes. E toda a seriedade e segurança que a instituição parece transportar se transforma em momentos de revelação de arrogância sem ética, que se funda apenas na ilusão de poder.

Em conversa com uma amiga, ela comentava uma descoberta que fez recentemente: programar é servir à mesa. Não é um lugar de poder, mas de responsabilidade.

O que me vale é que de cada vez que esta relação não corre bem, eu a encaro como uma oportunidade para reflectir sobre coisas que se revelam fundamentais: com uma instituição pude reflectir sobre a distinção entre criação e difusão de um espectáculo; com outra, os limites da intervenção política; a mais recente faz-me pensar sobre a evidência de que há sempre alguém com gabinete acima do último andar.

O contraste entre as grandes instituições e as pequenas estruturas de criação é intimidante para quem está deste lado. David perante Golias. Mas há que levar a história até ao fim: contribuímos todos para o nosso contexto: orgulhemo-nos se é bom, envergonhemo-nos se é mau. Mas toca-nos a todos. E perante a injustiça ou o desrespeito, há o nosso dever falar.

La Boétie escreveu aquele aceso Discurso Sobre a Servidão Voluntária. Há uma vontade de mudança urgente, neste discurso; é um texto apaixonado, que pretende emocionar, agitar, inspirar a revolta – e deve ser interpretado assim mesmo, com todas as fragilidades que disso advêm. Nele, La Boétie faz uma pergunta incómoda sobre a relação do povo com o tirano: Que poder tem ele sobre vós que de vós lhe não venha?

Isto é, acima de tudo, um discurso de reconhecimento: o trabalho nas artes não tem de acontecer, é algo inevitável. Não é um serviço à espera de ser feito; é qualquer coisa que tem de ser feita que se serve de nós para acontecer. Não somos nós que nos servimos da arte, é a arte que se serve de nós. O trabalho nas artes acontece por outros motivos: está muito mais ligado a uma caça ao tesouro, ou ao olhar para o movimento da água numa ribeira, à atenção que damos aos pássaros, ou à forma como escutamos as histórias dos nossos pais.

Por mais que precisemos de instituições artísticas, que nos dão condições de criação e de fruição como projectos mais modestos não podem dar, precisamos também, e que cresçam na  mesma proporção, de direcções artísticas que sejam humanistas, que tenham uma noção de escala, que não se deslumbrem com a sensação de poder: que não se confundam com a instituição, que é muito sisuda, as direcções artísticas que são mandatárias dos sonhadores.

Imagem por Guilherme Gomes

BREVES CRÓNICAS DO TEMPO são pequenos episódios, registos, princípios de reflexão pelo dramaturgo Guilherme Gomes.

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