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Teoria da Relatividade na Fidelidade

Por

 

Ivo Saraiva e Silva
May 1, 2023

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Teoria da Relatividade na Fidelidade

O conceito de fidelidade tem um percurso curioso. É com expectativa entusiasta que assistimos à sua transformação cada vez mais pertinaz, na ânsia de uma adequação mais justa à contemporaneidade vigente.


Se a informação tende a multiplicar-se num quotidiano cada vez mais acelerado e vertiginoso, há já um tempo considerável, seria manifestamente inevitável que as relações interpessoais se fossem multiplicar também, adotassem vários estilos, se estreitassem e se confundissem. Com a globalização e a célere sociabilização em rede com sujeitos de toda a parte do planeta, onde os encontros entre seres se apresentam mais variáveis, o lugar em que a pessoa se coloca para interagir com o outro muda, o que acaba por alterar o modo de viver e o modo de se relacionar – amorosamente e de formas outras. Já se assume a construção de uma casa e de uma família em trisal, e a tendência é a de irem sendo normalizadas uniões amorosas entre pessoas cada vez mais numerosas. Ora esta circunstância faz com que se assuma várias perspetivas acerca de um mesmo relacionamento e que, por isso mesmo, se busque um formato mais democrático do conceito de fidelidade – que ainda não há, porque é necessário primeiro questioná-lo e debatê-lo com propriedade.


Em A Sagração da Autenticidade, Gilles Lipovetsky aponta que “Várias mulheres e homens confessam-no: "Sou infiel, mas sinto-me fiel para comigo mesmo", "Minto ao outro, mas, pela primeira vez, sou sincero comigo mesmo." quando se é infiel, deixa-se obviamente de se ser sincero com o outro, mas em benefício da verdade para consigo mesmo. A psicoterapeuta Esther Perel defende que não vamos "à procura noutro lado" porque desejamos alguém diferente ou porque somos infelizes, mas muitas vezes para não nos perdermos no quotidiano monótono do casal, para nos tranquilizarmos a respeito do nosso próprio poder de sedução, para vivermos mais intensamente o presente. Em suma, para permanecer autênticos face às nossas exigências de autorrealização, inautêntico, mas como uma maneira de permanecer quem se é, escapando ao enclausuramento do casal. (pp. 101 e 102) Excluindo um certo ceticismo acerca de uma perfeição da vida em casal num tempo pré-cibernético, agora que a internet começou a interferir nas nossas vidas, participando delas de uma maneira muito acentuada, ocupando o lugar de um veículo para se agir na contemporaneidade, torna-se muito difícil não aceitar que as relações precisam de sofrer alterações e o diálogo inter(ím)pares também.


A defesa de enganar para se "ser fiel a si próprio" implica uma questão anterior que é legítimo que se a faça: o que é que determina aquilo que alguém é para si mesmo? De facto, a pessoa encontra-se constantemente num processo de aprendizagem inconsciente na construção do seu eu, orientando as suas caraterísticas, delineando os seus modos de agir, compondo os seus desejos. É que, na consciência de que tudo o que organiza o eu de um ser é manipulado pelas suas circunstâncias e por aquilo que o mesmo consome e onde participa, então o algoritmo contemporâneo imposto pelo universo cibernético revela-se um principal influenciador no endurecimento identitário. Mais, há um vício associado à interação com várias coisas e pessoas, ao mesmo tempo e num curto espaço de tempo, que está sujeito a esta interferência tecnológica. Russell W. Belk atribui à tecnologia o papel essencial de uma noção ao que ele chama "extended self" ("o eu estendido"), na tese de que a pessoa só se completa com coisas exteriores que habitam a sua forma de ser (cds, livros...); hoje, com a digitalização, esse papel parece pertencer à tecnologia, onde a mesma amplia a identidade de uma pessoa, definindo-a, na dimensão horizontal de que o individual vai interagindo cada vez mais com uma ideia de grupo (mais e mais alargado), de comunidade: “We can begin to see here some basic behavioral changes. What was previously a more private act of music acquisition and appreciation can become more of a group practice. In terms of Goffman’s (1959) presentation of self, the ability to publish our playlists online can say a great deal more about us than opening the windows and cranking up our stereo. And it appears that we can judge others’ personalities quite well based on the music that they listen to (e.g., Rentfrow and Gosling 2003, 2006). Not only is this true of individuals, but musical tastes are often shared and mutually shaped such that group identities are also expressed and coalesced through shared musical preferences (Brown and Sellen 2006; O’Hara and Brown 2006; Voida, Grinter, and Ducheneaut 2006). Horst, Herr-Stephenson, and Robinson (2010) found that, for the California teens they studied, listening to music together was a focus of hanging out as well as sharing musical tastes. Their digital sharing did not stop with music, but also involved links to videos, information about artists, and lyrics. Thanks to dematerialization and the Internet, we can also share such enthusiasm with a much broader imagined community (Born 2011).” (Extended Self In a Digital World, 2013).


Os Homens de Não Te Preocupes, Querida (2022), de Olivia Wilde, quando se aperceberam deste contexto, usaram a seu favor a tecnologia para criar um local-laboratório, onde poderiam ficcionar uma relação de casal, feliz, já agora, com todos os preceitos estabelecidos para tal, e que inevitavelmente se transformava numa máquina de opressão às suas mulheres. Ou seja, haverá sempre uma forma de se enganar a tecnologia, até se perceber que, na verdade, se está a destruir a liberdade e a enganar o próprio eu. Não obstante, a ficção de uma relação estará sempre lá, é só escolher a que mais nos convém. No seu Verão de 85 (2020), François Ozon questiona se inventamos as pessoas que amamos e, precisamente, o amor que dedicamos a alguém está sempre condicionado por diversos fatores que influenciam a natureza de uma dada relação, e a expectativa construída sobre a mesma. O pior é que parece que tanto a relação como a expectativa correspondente parecem estar desajustadas daquilo que o nosso modus vivendi implica. Mais vale aceitar a nossa ficção como polimorfa e, em vez de ir em busca da relação ideal para uma qualquer ideia de fidelidade, mais vale pensar a fidelidade nas relações à luz daquilo que somos hoje e a forma como nos podemos relacionar, cada vez mais democraticamente.


Inevitavelmente, a experiência das relações humanas ao longo dos tempos – as de união amorosa mas não só –, com todas as direções dogmáticas e interpretações que assumiram na História (unilaterais, principalmente no ocidente), têm vindo a sublinhar a necessidade de um desbloqueamento do conceito de fidelidade e, justamente, transformá-lo no seu reverso. O entendimento da fidelidade faz-se então na exuberante polimorfia inter-relacional, assente no diálogo democrático dos intervenientes na relação. Parece-me que é, desta forma, que a noção de fidelidade se aproxima mais de liberdade e, já agora, de uma zona de comprometimento que sonda um maior bom senso plural.

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