Por Rui Zink
O homem chegou-se ao pé de mim, furtivo:
– Há chiz?
– Perdão?
– Há chiz?
Eu respondi:
– Coc!
Ele não entendeu e, por isso, repetiu:
– Haxixe!
Como desta vez pronunciou bem, eu decidi também pronunciar bem:
– Coca.
– Coca?
– Coca.
– Se quer coca também lhe arranjo, mas só mais tarde, tenho de falar com um colega que ainda não chegou.
– Não, não, percebeu tudo mal.
E expliquei-lhe então que eu não queria comprar, eu queria vender. Coca. E se ele não me tivesse interrompido, eu iria ainda acrescentar que se lhe desse jeito podia trocar o seu haxixe pela minha coca, porreiro como sou fá-lo-ia na boa.
Mas ele interrompeu:
– Está a vender coca?
Anuí. Ele mediu-me de alto a baixo, só faltou tirar-me as medidas às mangas:
– Você?
Eu estive para responder com a minha melhor imitação de Robert De Niro: «Não vejo mais ninguém aqui». Mas contive-me. Sou mundialmente famoso pela minha contenção.
Ele insistiu, arqueando até ao limite do humanamente possível as sobrancelhas:
– Você?! A vender coca?!
– Há algum problema?
Ele encolheu os ombros:
– Não, não. É que não parece nada.
Raramente me zango a sério, como já disse, por isso não fiquei zangado. Só não resisti foi a dizer-lhe, num tom um tudo-nada mais raspaneteiro:
– Mas é preciso alguma farda para vender coca? Alguma dieta especial, roupa etc.?
Ele aí pareceu congeminar. Em francês «congeminar» diz-se «songer». Fica mais bonito.
– Bem – disse ele por fim. – Acho que não. Pelo menos farda não. Mas há um ar…
– Acha que tenho mais ar de polícia? – atirei ao calhas.
Aí foi a vez dele de parecer zangado:
– Está a chamar-me parvo?
Eu não estava a entender. Mas, quando ele explicou, fiquei a entender.
– Se você tivesse ar de polícia, acha que eu era parvo para lhe vir oferecer haxixe?
Ponderei. Ele tinha a sua razão. Mas eu também nunca fui de me ficar:
– Repare, um polícia que tenha ar de polícia não pode ser bom polícia à paisana…
Ele abanou a cabeça:
– Tem razão, mas também não tem razão.
Foi a minha vez de arquear as sobrancelhas:
– Perdão?
E ele, triunfal:
– Todos os polícias têm ar de polícia!
Estupefactei:
– Mesmo os à paisana?
E ele, bitriunfal:
– Sobretudo à paisana!
Decidi não apontar os eventuais erros na sua lógica e entrar no jogo:
– Portanto, para si, eu não poderia ser um polícia.
– Niet. Nope. Não.
– E acha estranho que eu seja um vendedor de coca...
– Sim.
– Mas acha que eu já poderia ser um cliente para o seu haxixe.
– Isso mesmo.
Quase me exasperei:
– Desculpe lá, mas isso não tem lógica.
– Pelo contrário, tem toda a lógica!
Nunca se discute com uma pessoa que põe um ponto de exclamação a seguir a «lógica». Por isso, suspirei fundo e aceitei:
– Como quiser. Amigos como dantes? Quer mais alguma coisa ou posso seguir o meu caminho?
– Tem a certeza de que não me quer comprar haxixe?
– Não. Nem por isso.
– A sua coca é boa?
– Da melhor que há à venda em Lisboa.
– Então dê-me um aí um grama.
Aí meti a mão no bolso mas, para surpresa dele, em vez de um saquinho com cocaína tirei a Smith & Wesson calibre 22 que tinha comprado horas antes, porque mais vale prevenir que remediar.
– Tenho uma ideia melhor. Que tal dar-me você todo o seu haxe?
Ele, alarmado:
– Ah! Mas você não tinha cara de ladrão…
Eu sorri, como fazem as pessoas que estão em vantagem:
– Não? Temos pena.
Contrafeito, ele deu-me todo o seu haxixe.
Eu ia a guardá-lo quando, velha raposa, decidi cheirar. E fiz bem.
– Mas isto é louro prensado!
E ele, tritriunfal, sorriu um sorriso mau e feio:
– Ladrão que rouba ladrão…
Eu aí perdi definitivamente a paciência e pus um ponto de exclamação à frente de uma palavra que nunca deve levar ponto de exclamação:
– Mas isso não tem lógica!
E disparei. Três tiros.
Mas nada aconteceu.
Por sorte dele, eu já tinha sido enganado horas antes, no mesmo Rossio, quando comprei a Smith & Wesson a um tipo que me dissera:
– Psst, pistola?
Rui Zink (Lisboa, 1961)
Escritor e professor. Autor, entre outros, de Apocalipse Nau (1996) e A Instalação do Medo (2012). Livros mais recentes: Manual do Bom Fascista e O avô tem uma borracha na cabeça.
Esta iniciativa resulta de uma parceria Coffeepaste / Prado. A Prado é uma estrutura financiada pela DGArtes / Governo de Portugal para o biénio 2020/2021.