
Turbilhão, confusão, emoção... São sentidos para a palavra adolescência, pela pena dos próprios, aqueles que a estão a viver no presente. Mas não só. Foi o que descobriram Miguel Fragata e Inês Barahona, fundadores da companhia Formiga Atómica quando se decidiram a ouvir este público tantas vezes emparedado entre crianças e adultos.
Tudo começou precisamente num outro espetáculo da dupla, em que crianças e adultos estavam separados por um muro. Em mais do que uma ocasião, houve adolescentes que participavam e lhes perguntavam: «E eu, onde fico?» Miguel e Inês decidiram explorar este lugar ausente. Para isso era preciso conhecer, chegar à vida e ao testemunho da adolescência. O projecto foi proposto ao Teatro Nacional D. Maria II, que aceitou a parceria. Ali, no Foyer do Teatro, foi colocada uma coluna onde qualquer pessoa poderia deixar o seu diário de adolescente, fosse qual fosse a sua idade no presente. Chegaram diários, mas não de adolescentes. Os adolescentes de hoje não escrevem diários (haverá excepções). Se os escrevem, afirma Inês numa conversa registada na folha de sala da peça, não se desfazem deles. Estão ainda no presente do seu testemunho, estão a vivê-lo e processá-lo. Na apresentação do livro
Ciclone, que resulta da peça, Inês acrescenta: «O que nos chegou dessa fase [arranque do milénio e da actualidade] foi por email, excertos de blogues, alguns textos que apareciam em comentários nas redes sociais numa lógica muito diferente. Eu costumava brincar dizendo que a partir de 2000 os diários ficaram voltados do avesso, em vez de serem escritos para dentro passaram a ser escritos para fora. E essa foi uma diferença muito grande. Há uma noção de diário para se dar a ver aos outros e isso transforma completamente o significado do que pode ser a escrita diarística.»

Essa ideia ganha corpo na personagem de Bernardo, que no início do livro, na sua primeira participação, afirma: «Decidi criar um blogue. Um blogue que fosse, tipo, um diário, mas aberto ao mundo inteiro. Sem aquela coisa pirosa do papel que cheira bem e da caneta especial. O digital é o autêntico:
what you get is what you see. Na verdade, nunca tive um diário. Aquela ideia de estar a escrever só para mim nunca me agradou. Acho que não tem interesse nenhum. Um blogue é completamente diferente. Um blogue existe para dar a ver a vida de uma pessoa. E para isso só é preciso
wi-fi.»
Inês e Miguel exploraram a experiência da adolescência real através de diversas atividades com o público adolescente: «Fizemos miniespetáculos portáteis que levámos às escolas e que depois se desenvolviam em conversas aprofundadas com os grupos; houve os confessionários, em que reuníamos individualmente com um adolescente e colocávamos questões, e que nos forneceram muito material; os cursos que fizemos aqui no Teatro D. Maria II a partir da ideia de criação e diários, e de composição musical e letra, e que nos deram uma aproximação grande ao ambiente e à maneira de estar e de ser próprias desta fase... Foi com base nisto tudo que começámos a criar o texto.» No longo processo, contaram com a companhia de Maria Remédios, que realizou uma das oficinas com adolescentes, propondo a realização de diários em vídeo, Catarina Sobral, que explorou a mesma noção diarística através da ilustração, Afonso Cruz através da escrita, e Capicua e Pedro Geraldes na composição de letra e música.
A peça, quando idealizada por Miguel Fragata, seria um musical. Um musical que desconstruísse por um lado e por outro reforçasse o vórtice de um momento em que a música é sinónimo de compreensão, de conforto emocional e de experiência e ainda de integração numa tribo. A música é, aliás, um dos elementos constantes em todas as gerações de adolescentes. O outro é a confusão e o caos.

Com a recolha de um ano e meio, ideias e experiências concretas ao dispor, Inês e Miguel escreveram a peça
Montanha Russa. O resultado são quatro vozes, duas femininas e duas masculinas, separadas por aproximadamente uma década sucessivamente: Anabela vive a sua adolescência nos anos 70, Carla entre finais de 80 e inícios de 90, M. na década de 2000 e Bernardo na atualidade. Ninguém se relaciona, ninguém se conhece. Cada um apropria-se da fala, de forma mais ou menos aleatória, consoante a vontade e a determinação. As raparigas escrevem em voz alta nos seus diários, um dos rapazes escreve uma longa carta e o outro, o mais novo, partilha um projecto de blogue. As personagens não têm nome na peça. Não é preciso. Estamos a vê-las, a acompanhá-las, a seguir-lhes os gritos, os saltos, os movimentos contorcidos de prazer, euforia, medo ou angústia. Ainda, esta ausência de nome acentua a época em que os vários textos testemunhais são escritos e marca uma dualidade: a particularidade da experiência de cada personagem contrasta com uma implícita comunhão de estado geral, o da mudança, da descoberta, do crescimento, seja em estado de graça ou de profunda amargura. Essa condição está muito presente na peça e aprofunda-se no livro, onde as personagens ganham nome (o mesmo dos actores), como reforço da sua presença (agora não as vemos, como no palco do teatro) e uma história mais detalhada, especialmente Bernardo.
Se o texto dramático e o texto narrativo têm diferenças claras, desde o nome das personagens ao desenvolvimento da personagem de Bernardo, a cujo passado temos acesso no livro mas que desconhecemos na peça, música e ilustração têm um lugar exclusivo em cada um dos géneros. As canções, interpretadas ao vivo por Hélder Gonçalves, Manuela Azevedo, Miguel Ferreira e Nuno Rafael, entram pelo corpo e dialogam com as personagens através das letras, no movimento coerográfico e dramatúrgico que o público observa. A sua ausência inevitável no livro deixa um vazio e abre espaço para um problema que é preciso resolver. Há dinâmicas relacionadas com o momento, que é o do espectáculo, que implicam uma construção daquela duração irrepetível e até integram uma interrupção dos monólogos para um lanche de actores e músicos, numa espécie de metaficção dentro da representação. A ideia de ambiguidade entre personagens e os respectivos atores começa nos seus nomes reais (Anabela Almeida, Carla Galvão, Miguel Fragata e Bernardo Lobo Faria) e perpassa para as suas idades, cuja adolescência corresponde biograficamente às épocas em que as personagens a vivem. Como é possível alimentar o mesmo pressuposto? Como se cria um objecto em que o testemunho verídico se cruza com a simulação de um conjunto de experiências e ideias recolhidas e transformadas numa história a quatro tempos e quatro vozes? A ilustração de Mariana Malhão responde a essa demanda e preenche o vazio deixado pelo som e pelo movimento. Como a própria partilha na apresentação de
Ciclone, a sua aproximação ao projecto implicou não apenas o visionamento da peça mas um mergulho na sua própria adolescência para chegar a um traço e a uma forma que expressasse essa condição. «Foi na adolescência que comecei a desenhar. Desenhava muito com lápis, que foi o material que escolhi para a ilustração do livro. O traço, o risco e o vestígio que deixa são muito expressivos e achei que era uma boa escolha.» Miguel Fragata recorda o processo de criação das personagens na ilustração: «Mantivemos a estrutura das quatro personagens que tal como no espectáculo vivem a adolescência em quatro épocas diferentes e no início tinhamos uma questão: como íamos distinguí-las? Havia a ideia de que a ilustração pudesse ter quatro linguagens que acompanhasse o caminho de cada uma delas (o que de certa forma acontece) mas era preciso alguma coisa que ajudasse a identificá-las e pensámos se seria o nome a coisa certa a fazer porque no espectáculo isso não é necessário. Temos a imagem, temos os atores ali à nossa frente, é evidente que história estamos a acompanhar. Então acabámos por nos aperceber que à semelhança do que acontece no espectáculo em que temos quatro actores em quatro épocas diversas a viver uma adolescência que corresponde mais ou menos à da sua própria geração, que os nomes dos verdadeiros actores que no fundo deram corpo às personagens que agora lemos no livro, são nomes muito bem colocados nessas épocas.» A ilustração acompanha cada uma das personagens ao longo da acção mas cede à tentação de encaixar cada uma numa moldura rígida. As cores de fundo de muitas páginas não têm uma associação exclusiva a A ou a B, assim como os elementos mais referenciais ou simbólicos, ou ainda uma composição mais ou menos organizada. O que seguimos e identificamos são os momentos, que podem ser melancólicos, angustiantes, enigmáticos, ou até representativos de um lugar ou pessoa do passado. Mariana Malhão alimenta assim esse contágio que distingue mas também une as narrativas em primeira pessoa. E estas narrativas têm muito de expressivo, de emocional, de crítico. São desabafos, partilhas invisíveis ou com uma intenção, são juízos de valor e confrontos com os outros e com cada um. Anabela sente-se presa, incompreendida pela família e com um desejo incontrolável de descobrir o amor. Carla tem o síndrome de Peter Pan. Será passageiro mas doloroso. M. revela o fim das ilusões e a traição à ingenuidade e Bernardo revoluciona-se explorando lugares esquecidos ou abandonados. Todos têm uma relação particular com a sua família, todos vivem uma experiência transformadora, todos crescem, todos sofrem. Isso é o que existe em comum. Depois há, efectivamente, uma montanha-russa que ultrapassa o seu lugar simbólico para ganhar nome, Ciclone, e que acolhe, um a um, em momentos distintos, os quatro protagonistas. A medalha da Senhora da Assunção parece igualmente transferir-se de uns para outros mas o mistério, como na vida, nem sempre se resolve totalmente. Ou tem sequer relevância.

Em entradas mais ou menos curtas (da meia página às três páginas de texto seguidas) cada personagem vai intervindo em ritmos diferentes, porque nem todos têm o mesmo a dizer na mesma altura. A ilustração enleia-se no texto com figuras, riscos, traços de movimento, tipografia. Se o espectáculo se desenrola em ritmos acelerados, mesmo que não uniformes, o mesmo acontece com a leitura, que responde ao que o livro pede. Parece natural e intuitivo mas obedece a muitos cuidados. O facto é que se criaram dois objectos artísticos complementares, nascidos da mesma origem mas que não se justapõem nem dependem um do outro. Ambos ficam a ganhar.
Este artigo foi publicado ao abrigo da nossa parceria com a Fundação José Saramago. Foi publicado originalmente na Revista Blimunda de fevereiro de 2019.