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Cartas ao Panteão

Cartas ao Panteão (XIII)

Por

 

Ricardo Cabaça
November 24, 2023

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Cartas ao Panteão (XIII)

Meu caro Mandelstam,

 

Ontem assisti ao concerto sublime de Kurt Wagner e Andrew Broder no Centro Cultural de Belém. Confesso que há muito tempo que não via tanta poesia num espetáculo musical: a palavra, a música, a voz e a presença, tudo tão perto e ao mesmo tempo imaterial. Saí da sala e fui direto para o carro, a noite estava fria, mas as pessoas com quem me cruzava sorriam como numa noite de verão. Mesmo sabendo o caminho para casa, meti no mapa o sítio para onde queria ir. Não gosto de me perder, talvez seja um velho hábito que nunca vou deixar de cumprir.


Ligo o rádio, como sempre na Antena 2, e lá estavas tu na Ronda da Noite. O teu amor falava de ti, de vocês, Nadejda contava o momento em que vocês se conheceram, a paixão que vos uniu até à tua morte, a forma hedionda como foram excluídos da sociedade. Como pode um poeta ser uma figura tão maldita e perigosa? É simplesmente horrível pensar que retiraram todos os direitos, não podias mais trabalhar, visitar as grandes cidades, ser quem realmente eras. Um inimigo do povo, um traidor da revolução.


Enquanto ia a caminho de casa e ouvia na rádio a tua história, pensava em ti e no concerto do Kurt Wagner, a poesia em dois estados completamente distintos, mas sobretudo a liberdade de poder viver a beleza e a arte sem ter medo de nada, a morte não nos vai atingir nunca. Os idiotas nunca poderão compreender a essência da poesia porque o seu nariz cheira demasiado a sangue, corações mergulhados num lago de ódio que têm imperiosamente de trazer as trevas ao mundo. Assim foi Estaline, culpado da morte de tantos artistas, um canalha que cortou abruptamente a tua vida. Uma vez ele disse que A morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística., assim sendo, a tua morte foi uma verdadeira tragédia.


Óssip, onde está o teu corpo? Bem sei que não podes responder a esta pergunta, na verdade ninguém pode fazê-lo, mas é uma das coisas mais antigas que trago comigo nesta relação que temos. Onde está o teu corpo? Quando comecei a ler a tua poesia e a conhecer um pouco melhor a tua vida, caiu sobre mim uma dimensão trágica da história. A tua poesia, de repente transformada num instrumento de guerra, foi o início do teu fim, não que isso estivesse nas tuas mãos, mas porque alguém decorou um verso e levou-o a Estaline. A partir dessa noite o teu destino estava definido. Riem-se-lhe os bigodes de barata, foi este o verso que um traidor levou ao ditador. Pensavas estar num círculo fechado, porém, no teu tempo, isso era praticamente impossível. Ouvidos carregados de ortodoxia condenaram-te à morte. E onde ficou a poesia?


Ontem, durante o concerto, estava sentada ao meu lado uma mulher, uma desconhecida. Pensei nela como uma agente do KGB, pronta a espiar sentimentos, qualquer reação à música que fosse suspeita e considerada inimiga do povo. Podia eu ter partilhado com ela aquilo que estava a sentir perante o monumento que é a voz de Kurt Wagner?


Tudo está na memória e na pele, o tempo e a obra, aquilo que criamos com o coração. Talvez não saibas como a tua obra chegou até nós, mas é realmente melancólico ler os teus poemas e saber que foi Nadejda quem decorou cada verso, para, anos mais tarde, longe do terror estalinista, escrevê-los para que pudessem ficar finalmente em segurança. Como ela te amou. Como ela amou a humanidade ao ponto de decorar os teus poemas para que não se perdessem como tu. De certa forma, Nadejda guardou a tua fala para sempre.


Entender a razão da poesia ser considerada proibida e proscrita no mundo é um exercício doloroso, um ato ingrato de aceitar a humanidade, no entanto, nessa dor profunda está a chave para compreender a tua poesia, o abismo que nela habita e todo o espírito de uma época marcada pelo extremismo, pela miséria e pelo ódio. O teu crime foi ser sublime, mais elevado do que o resto dos homens do teu tempo. Passaste de herói dos soviéticos a um inimigo da luta de classes, lido e querido no tempo de Lenine, odiado e morto na era de Estaline.


Perdeste a vida num campo de trabalhos forçados, a partir pedra num frio desolador, por mais que tente não consigo imaginar tamanho horror. O teu corpo ferido e frágil num inverno invencível, a tua mente a viajar por uma dimensão poética mais forte do que qualquer rocha terrestre, as tuas mãos nas mãos de Nadejda, a tua pele na dela, tal como na primeira noite.


Não sinto mais forças para escrever esta carta, dói-me a alma e as mãos, o teu sonho terminou quando o bigode do ditador se eriçou de ódio, perdeste a vida, o corpo, e qualquer morada possível. Mesmo não sabendo onde estás, posso garantir-te, querido Mandelstam, que no meu Panteão estarás sempre seguro e livre de qualquer violência. Neste edifício imaginário que eu construí poderás viver para sempre com Nadejda, tu a leres um poema, ela encostada a ti, a ouvir e a decorar cada uma das tuas palavras.

 

Um abraço afetuoso do teu amigo,

Ricardo Cabaça

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