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Cartas ao Panteão

Cartas ao Panteão (XVIII)

Por

 

Ricardo Cabaça
April 29, 2024

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Cartas ao Panteão (XVIII)

Meu caro Cossery,

 

Encontrei-te, pela primeira vez, no Bairro Alto, mais exatamente na Ler Devagar, uma livraria que eu costumava ir amiúde. Entre alguns copos de vinho e folhas de papel, tinha por hábito, quando a noite era feita de sorte, descobrir algum autor que ficaria para a vida.


Assim aconteceu contigo. Habitavas a parte destinada à editora Antígona, uma casa que costuma oferecer aos leitores um catálogo refinado e subversivo, e logo me chamaram à atenção alguns pormenores que me prenderam definitivamente à tua aura: o teu nome, as capas dos livros, os títulos, e claro está, as tuas palavras. Logo naquela noite comprei dois dos teus livros, Mandriões do vale fértil e Mendigos e altivos. Fui para casa de coração cheio pois sabia que o meu Panteão, que ainda estava em construção, teria mais um autor para erguer secretamente as suas paredes.


A minha relação contigo cresceu de forma súbita e avassaladora, passei a ser teu leitor voraz, comprei todos os livros, li as poucas entrevistas que deste, passei a ser um apóstolo da tua obra. Desde então não cesso de falar de ti, sempre falo de ti. Ao longo dos anos incentivei várias pessoas a conhecerem os teus romances, as personagens que habitam o submundo de Cairo, a querida Cairo. Os teus vagabundos, pedintes, pequenos criminosos, passaram a ser também habitantes dos meus dias, tentei encontrá-los enquanto caminhava na rua. Confesso que encontrei um deles no Rossio, um verdadeiro príncipe sentado no seu trono de pedra. Todos os dias me cruzava com este homem que desafiava o mundo com um sorriso, sempre sentado de perna cruzada, as mãos igualmente cruzadas sobre os joelhos, a pele queimada pelo sol, o cabelo branco e a barba longa e nívea, ele não mais fazia do que sorrir, sempre em silêncio, pensaria por certo sobre o caos à sua volta, o ritmo que as pessoas aceitam por uma questão de sobrevivência. Quando passava por ele pensava que podia ser uma personagem de um romance teu, ou talvez a tua própria encarnação. Lamento nunca ter falado com ele, quer dizer, com palavras, dirigindo-me diretamente a ele. Agora percebo como estou a falar contigo e com ele ao mesmo tempo, agora falo com os mortos. Este príncipe tinha uma dignidade soberba, um sem-abrigo que era mais distinto do que qualquer pessoa que passasse por ele, até que subitamente a violência das ruas o destruiu e aos poucos entrou numa vertigem de decadência e alienação. Pelo menos ainda tive tempo de apresentá-lo ao longe a um amigo muito especial e que também terá espaço nesta carta. A seu tempo.


Meu querido Cossery, depois de ter sido tomado pela tua obra e pensamento, pensei que tinha chegado a hora de colocar-te no palco, então escrevi uma peça profundamente inspirada na tua vida e obra. Albert Cossery ou Uma palavra para o dia chegar ao fim. O que achas do título? Quando tiveres a oportunidade de ler o texto creio que vais sorrir um pouco, nele encontrarás os teus velhos amigos, encontrarás também a tua amada Cairo, a areia que cobria os passos, o tempo lento para refletir e para saborear o ócio. Talvez onde estejas exista uma livraria e nela te possas sentar durante horas a ler a peça que escrevi para ti. Se puderes lê com os teus amigos, mostra-lhes que foram pela segunda vez personagens de literatura. Publiquei a peça numa editora chamada não (edições), talvez a mais indicada. Gosto do nome como sinónimo de recusa, talvez semelhante à tua quando negavas a imposição das editoras para que escrevesses mais romances.


Voltando aos amigos, os meus e os teus, tenho duas histórias para partilhar contigo. Recentemente morreu José Neto, um grande ator, o Tirésias no meu Regresso a Ítaca, e poucos meses antes de ele morrer eu tinha-o desafiado a fazermos juntos a peça que eu havia escrito. Estávamos empolgados, porém, a morte prematura acabou por cortar abruptamente os nossos desejos. O Zé era um sábio, um erudito que estudava os interstícios da vida, alguém que também conhecia e admirava a tua obra.


Partiste de Cairo para Paris, e na minha peça a personagem abandona a capital egípcia para se fixar numa praia tropical, uma paisagem tomada pela areia, ócio e belos pores do sol. Quando publiquei a peça convidei um grande amigo, o ator Haroldo Costa Ferrari, para ler alguns excertos durante a apresentação do livro. Claro que o nosso objetivo era encenar o texto, mas entretanto o Haroldo regressou ao Brasil. O mais importante foi quando nos sentámos para selecionar os excertos, lembro-me perfeitamente como celebrámos a vida ao abrir uma garrafa, um brinde ruidoso para receber no mundo a filha do Haroldo - a razão do regresso ao Brasil. No mesmo instante celebramos o nascimento e o futuro, a tua obra e a nossa admiração por ti.


O texto ainda é inédito, porém, talvez este seja o ano para apresentá-lo na tua cidade eterna, na Paris que tanto amaste. Se tal acontecer, prometo passar pelo Hotel Louisiana, ler para ti qualquer coisa, erguer bem alto o brinde à nossa amizade.


Uma última nota: uma investigadora mexicana entrou em contacto comigo porque queria escrever sobre a minha peça. Fiquei muito comovido porque estaremos juntos numa tese sobre a tua obra, e eu contribuí muito modestamente para isso.

 

Um abraço afetuoso do teu amigo e admirador,

Ricardo Cabaça

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