Conteúdos
Agenda
COFFEELABS
Recursos
Sobre
Selecione a area onde pretende pesquisar
Conteúdos
Classificados
Notícias
Workshops
Crítica
Por
Partilhar
No dia 25 de maio de 2020, em Minneapolis, nos EUA, George Floyd morreu asfixiado na via pública. As imagens do assassinato do afroamericano de 46 anos circularam por todo o mundo. Os protestos que efervesceram no rescaldo estenderam-se a mais de 2000 localidades e terão envolvido 15 a 26 milhões de pessoas só em território norte-americano, fazendo desse momento o maior movimento de protesto na história do país (Burch et al., 2020). Internacionalmente, as manifestações chegaram a cerca de 60 países, dando voz a experiências de luta contra o racismo por todos os continentes. Em junho de 2020, uma carta assinada pelos 54 países africanos convocou com urgência uma reunião do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Nesse encontro, foi adotada uma resolução condenando as práticas raciais e discriminatórias contra pessoas africanas e pessoas de ascendência africana.
Em bom rigor, a magnitude da indignação que acompanhou o homicídio de George Floyd liga-se de forma mais direta ao movimento Black Lives Matter (BLM). O BLM ganhou impulso em 2013 na sequência do assassínio de Trayvon Martin, um jovem afro-americano de 17 anos. Desde então, de forma consistente, o BLM, significativamente impulsionado por mulheres negras, consolidou uma rede nacional de protestos mobilizados contra a violência sobre a população negra. Tanto quanto superar uma cultura de violência sobre corpos negros, a ideia de que “vidas negras importam” visa confrontar as persistentes hierarquias do humano estabelecidas por séculos de colonialismo, escravatura e racismo estrutural.
A expansão ultramarina europeia, iniciada já no século XV nas incursões de Portugal no Norte de África, viria a exercer o seu indelével impacto no mundo com a chegada de Cristóvão Colombo às Américas e de Vasco da Gama à Índia. Elementos como os impressionantes números do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, a escala do genocídio indígena nas Américas, as campanhas militares de ocupação no final do século XIX e início do século XX, ou a cronologia das guerras coloniais, dão testemunho de como o colonialismo europeu definiu a face do mundo em que vivemos, à luz daquilo a que Achile Mbembe (2015) chamou de “capitalismo racial”.
Falar de colonialismo implica convocar uma violência que, além de genocídios, conversões forçadas, violência sexual, desaparecimento de línguas e culturas ancestrais, processos de escravização em massa, guerras e massacres, sempre se articulou com a tutela, racialmente organizada, das mais elementares relações no quotidiano, criando mundos em que, como dizia Frantz Fanon, o sujeito colonial tinha de aprender, antes de tudo, a ficar no seu lugar, a não ultrapassar os seus limites (Fanon, 2004: 15). Além da violência física e da segregação social, como o próprio Frantz Fanon nos mostrou, um dos mais perversos efeitos do colonialismo é a desumanização das pessoas negras e, no limite, a incorporação das hierarquias raciais por aqueles e por aquelas que são racializados enquanto inferiores. No romance autobiográfico em que dá voz às suas experiências enquanto jovem mulher negra em Portugal, Djamilia Pereira de Almeida fala-nos de como as hierarquias raciais são também vigiadas a partir de dentro, por uma “supremacista em mim” (Almeida, 2015: 103). Por isso mesmo, em linha com o mote “Black is Beautiful”, bell hooks (1995) referia a necessidade de as pessoas negras encontrarem na autoestima e no autoamor cruciais manifestos políticos.
Porque os limites que definem o lugar do sujeito colonial persistem, e estão tácita e explicitamente codificados no presente das ex-metrópoles e nas desigualdades planetárias, as lutas antirracistas são hoje, ainda, profundamente anticoloniais. Nesse sentido, o impacto planetário dos protestos que eclodiram no rescaldo do assassinato de George Floyd pertence à linhagem das vagas de resistência anticolonial e antirracista que se articularam, por exemplo, na independência do Haiti (1804), nas sucessivas abolições da escravatura, nas lutas de libertação nacional que percorreram a Ásia e a África após a Segunda Guerra Mundial, no movimento dos direitos civis nos EUA (anos 1950 e 1960) ou na luta contra o Apartheid da África do Sul. Os protestos que irradiaram pelo mundo a partir do assassínio de George Floyd constituem um levantamento antirracista marcadamente transnacional, que permitiu denunciar a força dos legados do colonialismo em diferentes continentes e comunidades políticas nacionais. Nesse sentido, reconhecer a importância dos legados coloniais no presente implica compreender o modo como a desigualdade socioeconómica, a discriminação e a exposição à violência desproporcionadamente afetaram e afetam as populações colonizadas e os seus descendentes em cada contexto. Mas implica também confrontar o modo como os antigos impérios coloniais preservam ainda uma memória pública dominante em que o colonialismo, quando não exaltado, é denegado ou candidamente lembrado.
Um dos efeitos mais relevantes dos protestos que eclodiram em 2020 foi o modo como vieram fortalecer e visibilizar levantes contra a persistência de uma memória eurocêntrica. Esses levantes sinalizam e cumprem o imperativo de uma descolonização por cumprir, aquela que resultaria do pleno reconhecimento da violência colonial enquanto elemento crucial à formação da Europa e à da experiência da modernidade ocidental. Um tal movimento tem implicado confrontar a desmemória política que, silenciando a violência colonial e racial, benevolamente consagra a Europa o berço de uma civilização de vocação libertadora e universalista. Declara-se assim a insustentável seletividade de uma genealogia que consagra como preciosos e singulares legados europeus, o renascimento iluminista, a democracia e os direitos humanos. Nesse sentido, descolonizar o presente articula-se com o reconhecimento da força definidora do colonialismo na persuasão de que vivemos em sociedades ainda-coloniais.
Assistimos nas últimas décadas a toda uma sorte de processos de restituição material e simbólica reivindicados pelas nações outrora colonizadas, pelas populações afrodescendentes e pelos povos originários. Esses processos têm consistido, por exemplo, na edificação de memoriais da escravatura; na construção de museus e na produção de exposições museológicas que representem as experiências das populações colonizadas e escravizadas; em pedidos de perdão por parte de líderes políticos e religiosos; na assunção de genocídios perpetrados pela ocupação colonial; em reparações económicas de instituições que beneficiaram dos proventos da escravatura; na reformulação dos currículos educativos sob a perspetiva de diferentes ancestralidades; ou na retirada de estátuas, de toponímias ou de símbolos que exaltam personalidades que se notabilizaram como escravocratas ou na defesa da supremacia branca. A democratização do presente depende crucialmente da descolonização das artes, dos saberes e dos corpos na superação das violências ainda perpetradas por aquilo a que Davi Kopenawa (2015), ativista e xamã yanomami, designou “um pensamento cheio de esquecimento”.
Referências bibliográficas
Almeida, Djaimilia Pereira de (2015), Esse cabelo. Lisboa: Editorial Teorema.
bell hooks (1995), Killing Rage: Ending Racism. Londres: Penguin Books.
Burch, Audra et al. (2020), “How Black Lives Matter Reached Every Corner of America”, The New York Times, 13/06.
Kopenawa, Davi (2015), A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras.
Mbembe, Achile (2014), Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona.
Este artigo foi publicado ao abrigo da nossa parceria com a Umbigo Magazine. A UMBIGO é uma plataforma independente dedicada à arte e cultura, que inclui uma revista trimestral impressa, uma publicação online diária, uma rede social virada para arte e um programa de várias atividades de curadoria.
Apoiar
Se quiseres apoiar o Coffeepaste, para continuarmos a fazer mais e melhor por ti e pela comunidade, vê como aqui.
Como apoiar
Se tiveres alguma questão, escreve-nos para info@coffeepaste.com
Mais
INFO
CONTACTOS
info@coffeepaste.com
Rua Gomes Freire, 161 — 1150-176 Lisboa
Diretor: Pedro Mendes
Inscreve-te na mailing list e recebe todas as novidades do Coffeepaste!
Ao subscreveres, passarás a receber os anúncios mais recentes, informações sobre novos conteúdos editoriais, as nossas iniciativas e outras informações por email. O teu endereço nunca será partilhado.
Apoios