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Nude violeta

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Duarte Amado
May 4, 2025

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Nude violeta

À entrada para ver Violetas (25.04–26.04), novo trabalho de Vânia Doutel Vaz estreado no DDD – Festival Dias da Dança (Porto, 23.04–04.05), somos convidados no foyer do Teatro Campo Alegre a preencher um inquérito aos públicos. Lá dentro a performance retomará de alguma forma esse gesto, mas sem o convite: o de sermos observados, contados, sondados – como se os nossos dados e a nossa presença fossem detetados como corpos estranhos que contam afinal com outros corpos muito precisos no meio do espaço, superando nessa atitude qualquer outra performatividade.


Quando entramos as cinco já estão lá (Vânia, Lua Aurora, Lucília Raimundo, Piny e Wura Moraes), fundidas num canto não iluminado fora de cena, camufladas pelo fundo da sala. A plateia quadrada contorna uma tela de tons nude, desalinhados, aqui e ali remendada com uma fita-cola que assinala, sem disfarçar, os rasgões, as reparações e imperfeições. O padrão gráfico sugere um código, uma estatística, um mapa ou um registo de presenças.


Surgem de forma furtiva atrás de nós, insinuando-se em silêncio pelo espaço e exigindo a nossa atenção para o que não se apresenta. Vigiam. Rentes, miram através de nós, gatinham, respiram. Abanam-nos as cadeiras quase impercetivelmente (ou é impressão da curta distância). Circulam e frequentam-nos as costas como um muro através do qual parecem contar-nos, ou contassem connosco, para um propósito que nos escapa.


Rondar e usar a silhueta do público remete-nos à condição de matéria observável, se não mesmo de obstáculo. Perguntamo-nos se é legítima ou desejável a nossa presença. Olhamos por cima do ombro. As performers retiram-se, reaparecem, revezam-se. Quando finalmente entram no quadrado central, ocupam-no como quem mede e avalia ainda apenas o contorno – para depois voltarem a abandonar e suspender a presença.


A dança de Violetas é avessa à fixação: coloca-se, recolhe-se, imiscui-se. Escapa e despreza subtilmente qualquer missão de apresentação, representação ou presença espetacular.


Na resistência íntima que atravessa a performance, cada uma assumirá o centro em regime de rotatividade. Quando uma se move para lá, as restantes mantêm-se atrás de nós, observadoras e cuidadores da experiência, num quinteto de solos sem ambições de unidade, correção, estilo ou vocações emprestadas da Dança e do corpo social – do ballet ao contemporâneo, danças urbanas, clubbing, clown, voguing, ao aspeto de brincadeira infantil como gesto coreográfico.


Há uma tensão entre potência e contenção; estar e performar; identidade e vínculo, expectativa e projeção: uma sensação incomum de coletivo em estado pessoal. Por vezes tocam-se lá atrás enquanto assistem, como se a intimidade fosse esse sinal de reconhecimento e estranheza, numa dança observada, escutada, autónoma. Respirada pelas outras.


O solo de Piny marca com vigor esse impulso e inflexão das certezas de palco e de papel, espectador e expectado: agacha-se à medida que a luz desce, tornando-se praticamente invisível no momento em que toca o chão. Ao recusar-nos um suposto direito a vê-la completar-se – cuida da queda. Quando volta a mover-se, fá-lo como quem desperta de uma noite sem forma: contorce-se, desafia-se, bate-se numa espécie de toureio íntimo e vibração excedente, entre a expressão pessoal e o gozo com a nossa urgência de ação. Dança para se instalar e apropriar-se como autora e autoridade de si própria. Munida de si, os movimentos afirmam-se no espaço e aproximam-na de uma complexidade original a partir da potência.


Lá mais para a frente, Vânia irá puxar do próprio pé e converter-se em marioneta de si própria, ironicamente espantada pela capacidade de auto-manipulação. Cai ao chão e conta com os dedos os segundos certos para se levantar. Abre as pernas e rasteja para trás, percorrendo o palco em contramão. Deitada de barriga para baixo, fita-nos num silêncio que pergunta com os olhos: tu sabes quem és, para me olhar assim?


Ver-se a ser

O chão de Violetas torna-se eloquente quando mais ou menos por acidente Vânia rasga um bocado e atira-se ao remendo explícito, numa espécie de kintsugi, a arte japonesa de reparar cerâmica partida com tinta de ouro, valorizando a rutura e a fissura como inscrição intacta. A metáfora estende-se às identidades em cena: compostas por camadas, sotaques físicos, heranças, fragmentos pessoais e subjetividades parceiras. O antigo figurino floral de “O elefante no meio da sala” (2022), solo anterior da coreógrafa, divide-se em partes pelas cinco. O elefante também se come às fatias. Esse desvio da unidade e da simplificação identitária, opera-se através de uma partitura de estilos coreográficos que afirma uma multiplicidade irredutível.


Entre o centro e a margem, palco e plateia, alterna-se entre ser visto e ver-se a si próprio. Juntarem-se ao nosso olho externo – aplicando-o em nós – reforça-o, como anula. Blinda o meio: às vezes um talent show onde só atuam público e jurados. Vazio que abre espaço a lógicas não performativas de existir.


O resultado questiona o corpo formal da dança e a segurança simbólica da identidade como mera representação de espólios e encomendas. Oferece-os, não como resposta, mas como pergunta que foge à saturação da autenticidade.


Com as cinco novamente fora de cena e uma luz violeta que nos deixa às escuras, viramo-nos para trás. Somos nós quem se move. É o palco que sobra, vazio, cheio das projeções do que cada um terá visto: um ativismo? uma narrativa? uma dança? alguém? Provavelmente a quinta pergunta.


Foto: © João Octávio Peixoto

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