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Os Universos de Gabriel Abrantes

Por

 

Mafalda Ruão
December 16, 2023

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Os Universos de Gabriel Abrantes

Datam da Idade Média as Tapeçarias do Unicórnio, uma das fontes de inspiração de Gabriel Abrantes; o artista nascido nos Estados Unidos da América, cuja vida nómada, fruto da carreira internacional dos pais, fez dele mais do que um lugar. Abrantes compreende todas as viagens que fez, a experiência de viver em vários locais, e o confronto com repetidos choques culturais e socioeconómicos, que o ajudaram a consolidar uma interpretação do mundo e a firmar as suas dicotomias - entre a certeza e a interrogação -, as quais encontraram na arte o veículo perfeito de expressão ou, quiçá, o exorcismo necessário.


Crescer em Washington DC - onde teve o primeiro contacto com a pintura - e a entrada na Cooper Union, em Nova Iorque, foram profundamente transformativos, ainda que o percurso pelas belas-artes, em França, lhe tenha incutido a avidez pelo cinema, a literatura, a arte contemporânea e a visita aos museus. Foi precisamente numa dessas ocasiões que se deparou com a ambivalência que a tapeçaria The Unicorn Rests in a Garden suscita, sugerindo o que poderá ser um descolamento entre o que está representado e o que é anunciado no título. É inevitável que a referência à obra não seja antes O Unicórnio em Cativeiro, já que o animal se encontra aprisionado, embora a corrente ao pescoço pareça folgada e a vedação que o circunda pequena. É possível que a figura mítica se deleite com o cenário idílico típico da tapeçaria millefleurs que o rodeia, compondo uma imagem ambígua entre o amado domesticado e os múltiplos símbolos de fertilidade e união (romã, orquídeas silvestres e cardos), cuja seiva pinga e abençoa o seu dorso. Da obra, assimilou Abrantes alguma candidez, a expressividade da alegoria e, seguramente, a ironia.

 

Regressa a Portugal, à aldeia transmontana da avó, para produzir uma longa-metragem, por volta de 2006. Desde então permanece no país, ao qual dedica grande parte das suas películas, seja através do retrato dos seus ícones culturais, ou da sua história colonial. Veja-se Diamantino, Palácios de Pena ou Taprobana. Se uma obra de arte é espelho inexorável do autor, a globalização, que sempre o acompanhou, é assunto incontornável nos guiões, filmados em contexto pós-colonial e reflexo de sentimentos antinacionalistas que, segundo confessa, “estão relacionados com o facto de os meus pais se terem mudado constantemente durante a minha infância, tendo trabalhado na antiga União Soviética, na Argentina pós-crise, em aldeias indígenas na bacia do rio Amazonas, em Bamako e em Port-au-Prince. [...] E por isso fui confrontado com contextos globais de extrema pobreza durante a minha juventude, [...] o que tornou a desigualdade da globalização muito forte para mim.”


Talvez por esse motivo, falar no percurso de Abrantes é depararmo-nos várias vezes com a ideia de respeito mútuo”, presente no seu habitual formato criativo de corealização e coprodução, e no comportamento humano que ambiciona explorar.

 

Abrantes tem desenvolvido maioritariamente curtas-metragens, as quais escreve, realiza, produz, e onde atua pontualmente. Em comum têm as várias camadas de humor, ora refinado, ora absurdo-infantil, de onde se percebem as influências do melodrama, dos filmes de guerra e suspense de Hollywood e, inevitavelmente, do próprio arquivo familiar, vivências passadas e ânsias contemporâneas. Os temas abrangem o histórico, o social e o político, piscando o olho ao pós-colonialismo e às questões de género e de identidade. Um mashup de culturas populares e referências simbólicas, algures entre o folclore e o politicamente correto, que asseguram ao público algum choque e uma leitura improvável e inesperada daquilo que seria a tradicional narrativa visual, quebrando balizas estéticas e conceptuais.


Disse Anaïs Nin: “O cinema, para ser criativo, tem de fazer mais do que registar.”[1] Abrantes segue essa linha, aquela que não se limita a descrever. Ele inventa. Na verdade, a estranheza, a comicidade e o enredo popular nos quais incorre, não invalidam as problemáticas políticas que contesta, convicto que “A estranheza pode ser uma manifestação retórica que, na verdade, reforça um discurso político, ao criar identificação, curiosidade e empatia no público, o que torna a linguagem mais particular, única e identificável.” Acrescentando que, se um filme tem uma intenção política, para que esta se efetive é importante que o cinema não se converta em doutrina. “Creio que há um atrito constante entre a arte e o ativismo político: um artista pode tentar evitar a propaganda... pode esperar não prejudicar a estética radical com mensagens didáticas, ou pode não querer atenuar um sentimento complexo e multifacetado, reduzindo-o a uma 'moral'.”


Como formulou Rancière, a experiência cinematográfica é a eterna negociação entre o que a tela nos apresenta e o que fazemos disso. A ação política de qualquer filme está no espectador, ao qual é inata uma posição política e teórica, pertencendo-lhe a reinvenção e interpretação de cada narrativa, pelo cruzamento das suas crenças, perceções e memórias. A noção de cinema como reino de sombras, no qual sucessivas realidades surgem aleatória e enigmaticamente, e cuja apreensão é apenas acessível emocionalmente, é talvez aquilo a que se referia Godard quando evocou que o cinema não é uma arte mas sim um mistério, que se forma diante dos nossos olhos e continua no teatro da nossa memória. O dever participativo do espectador é fulcral no regime estético da arte, consagrando o cinema como linguagem não estabelecida, antes arte viva que se presta à emancipação: o olhar também significa agir. Esta ténue transmissão de poder ou pensamento político e proativo, é natural para Abrantes: o gesto está no recetor da “mensagem”. Imputar à arte o caráter de ferramenta política é ingénuo e - ainda e infelizmente - incoerente, já que o mundo da arte compreende na sua génese (e ainda hoje, no seu avanço): exclusão racial, aculturação, uma história de discriminação de género e um invariável aparato de entretenimento, cujo investimento se cinge a certa classe social e económica. Persistindo ainda a dúvida, “no caso do cinema, televisão, videojogos e outros formatos de comunicação de massas, se estes têm a liberdade económica para expressar qualquer mensagem política relevante, ou se os que têm mais impacto são assumidamente apolíticos…”

 

Não obstante, Abrantes não se circunscreve ao cinema. Da sua série de pinturas a óleo, destacam-se criaturas indecifráveis, entre familiares comportamentos humanos e o imaginário surreal. Os vários Portraits, The Bathers ou The Cat Lady devem o olhar esgazeado às estátuas sumérias, bem como ao universo da banda desenhada, dos desenhos animados e da animação digital, caracterizado por semelhantes traços expressivos. Não bastassem as referências à história da arte e ao cinema, estas personagens resultam de modulação 3D, com cujas sucessivas camadas criativas e perspetivas o autor espera acentuar um “efeito telescópico: do abstrato ao figurativo; do apolíneo ao dionisíaco; da frieza do digital à sensualidade quente do óleo; do celestial ao básico; do sério ao cómico.”  


A pintura de Abrantes colide também com a já mencionada noção de cinema enquanto reino de sombras. O que significam os espectros indefinidos, surpreendentemente presentes (vivos) nas atividades mundanas retratadas? De onde vêm? Para o artista, é impossível não sentir ansiedade e desânimo. Vivemos numa câmara de eco, alimentada por algoritmos que nos levam a clicar, ver e consumir conteúdos cada vez mais radicalizados e extremos, o que faz com que muitos entrem em “rabbit holes” onde se polarizam num extremo do espectro político e se juntam à alt-right, ou noutro e se juntam ao ISIS, ou ainda noutro e se deixam consumir pela cultura específica e particularizada da humilhação pública, da identificação da vítima e da mercantilização do trauma que canibalizam os próprios movimentos que anteriormente elogiavam." Como reagir de forma efetiva à mudança, quando o mundo progride numa teia de desigualdades globais e locais, na emergência climática, no extremismo e na polarização, na vigilância em massa, na mercantilização da identidade e imparidade de género? Nada parece sensato ou viável, se mantivermos o status quo. É avassalador e angustiante conceber um programa político que seja realista, funcional e que não acabe por ser uma espécie de 'dilema do comboio' entre dois resultados potencialmente horríveis”. Os vultos somos nós, personificação de um futuro possivelmente apático: figuras digitais em espaços digitais, engolidos por um mundo inundado numa crise climática e que, todavia, prosseguem alheados ao meio envolvente, autómatos prisioneiros dos seus afazeres. Numa contínua regressão de significado, as imagens de referência são feitas por modulagem 3D, ainda que as imagens dentro de cada pintura resultem da experiência DALL·E; o que caricatura os fantasmas: eles mesmos avatares espectrais 3D digitais, produzem trabalhos feitos por inteligência artificial. A falta de esperança, o medo existencial e a inquietação do autor apontam desta forma o dedo a mais um problema - o avanço tecnológico. E assim ficam os fantasmas como alerta irónico, decerto pungente.

 

Se a contemporaneidade é o envolvimento com as questões mais prementes, e também o momento em que as tornamos nossas, então Abrantes cumpre o papel que a arte contemporânea dita. Até lá, fica um trabalho que, tal como o unicórnio, assume uma leitura plural, do humor do fictício aos marcos históricos, do kafkiano à situação sociopolítica atual; numa tentativa que me parece eternamente preservada pela arte, em procurar os seus fantasmas, já que “a vida é a procura por eles.”


[1]  Nin, A. (1969). The diary of Anaïs Nin : volume 4, 1944-1947. Nova Iorque : Harcourt Brace & Co.


Este artigo foi publicado ao abrigo da nossa parceria com a Umbigo Magazine. A UMBIGO é uma plataforma independente dedicada à arte e cultura, que inclui uma revista trimestral impressa, uma publicação online diária, uma rede social virada para arte e um programa de várias atividades de curadoria.

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