TUDO SOBRE A COMUNIDADE DAS ARTES

Ajuda-nos a manter a arte e a cultura acessíveis a todos - Apoia o Coffeepaste e faz parte desta transformação.

Ajuda-nos a manter a arte e a cultura acessíveis a todos - Apoia o Coffeepaste e faz parte desta transformação.

Selecione a area onde pretende pesquisar

Conteúdos

Classificados

Notícias

Workshops

Crítica

Artigos
Crítica

A tristeza favorita

Por

 

Duarte Amado
June 17, 2025

Partilhar

A tristeza favorita

O Melodrama: Senza Te de Bruno Brandolino é um afeto protagonista de uma ficção emocional encenada para exaltar e superar a autocomiseração e a nostalgia de crescer. Propõe uma tristeza como ética e estética relacionais, euforia ciclotímica, robusta e farsante, que acredita e goza com o seu próprio acreditar.

Um holofote sonda o público por alguns momentos à procura da sua estrela, antes de se concentrar no topo da escadaria por onde Bruno desce vindo de uma cortina vermelha de tiras plásticas, com leve ar de matadouro. Nessa altura já fomos arrastados para a mise-en-scène da identidade e do palco secreto do corpo: uma novela íntima, voyeur, latino-americana, camp, retro-delirante. Bruno será a imagem de um traço emocional acompanhado ao piano, arrastado até ao âmago do alegre-triste.

Ao fim das primeiras notas vocais – prontas a soar sentidas já que escutamos os originais do cancioneiro romântico latino –, uma salva de palmas telegénica a que só falta o ‘Applause sign’ aceso, atalha as emoções da plateia inexistente. O performer recebe-as com a convicção piedosa de uma fé performativa mais verdadeira que o real: neste ambiente cada gesto terá tanta ou mais verdade que o arquivo.

Com efeito, todos os passos e movimentos são embutidos por sons em off, das botas ao micro, até chegarmos aos aplausos enlatados entre o minimum applause e a standing ovation em faixa de CD. Lá para o meio Bruno entrará mesmo pelo público para recolher os louros-fantasma do overracting, numa imagem suada do desejo e da angústia de sermos amados pelo invisível.

Sem exigir inocência ou redenção pela tara, o procedimento aponta ao jugo coletivo, impreterível e sedento da validação. O melodrama do feedback em frente ao espelho. A atuação, digamos, traduz-se num playback em esteroides, autofágico, que empodera o lirismo de encarnar com a carnificina da presença organizada do espetáculo. Uma sobrevivência emocional aguda que por vezes parece arriscar o peso da intimidade pela afetação desse estado virtuoso. Mas o truque é mostrar o truque: a potência política do risível como recusa do irrisório.

Se não nos perdermos na forma, a voracidade do melodrama que somatiza à nossa frente em esforços para estetizar e ginasticar o desespero, garante que não se trata de vitimização ou de ser aceite, mas de uma linguagem que no seu excesso humaniza. A entrega radical ao formato não se faz por cinismo total, sendo talvez essa a sua maior ousadia. Serve para equilibrar-se no muro do nihilismo contemporâneo, sem uma postura de vanguarda ou de quem já viu tudo.

Operático e operativo, este exagero funciona como um recurso subjetivo de identidade e ocultação próximos do Eu. Acredita no que especula. Propõe que o excesso também pode ser genuíno; que a emoção pode gerar uma prontidão pré-normativa e (des)controlada de agir em abono de uma honestidade. O artista devolve-se a si próprio pela medida do excesso. O duplo serve para abraçar a convivência consigo, já que no fundo a emoção resiste à sua manipulação.

A convicção na trama não escapa a habitar todas as angústias, hipérboles, contradições e falências. Todas as horas passadas a cantar no banho. Todos os beijos treinados com a almofada. Este narciso não morre por não ser visto e por vezes o acting sugere mesmo que morre por finalmente ter sido.

Há um aspeto muito peculiar nessa sabedoria trágica: informa a todo o momento que estamos vivos. Aciona a morte como seguro de vida. A presciência da farsa é a certeza de continuar, numa constatação dos plots que organizam o absurdo e orientam a ação.

A dor que dói bem
Use your drama to be happy, slogan que lemos algures, seria aplicável a este manifesto lúdico e irónico. Entre o concerto, o drag, a coreografia e o delírio passional, Senza te ensaia uma ancestralidade de si próprio como desconhecido. Queer, latino-americano, autóctone e estrangeiro da memória: pessoal, familiar, coletiva. Ficcional, projetada e simbólica – fabulosa para alguns apenas se recorrer à efabulação certa.

O uruguaio parece conhecer bem esses limites: quando nos está prestes a perder para a intensidade, dispara “perdón”s como quem esticou a corda do guião e do plafond de empatia – na verdade estes códigos entre quem vê e quem faz para não roçar o ridículo são uma etiqueta usada para reconstituir-se. “Eu estou nesta ficção, mas esta ficção não é assim”, dirá na conversa no foyer do TBA após o espetáculo, evocando todas as existências possíveis, desejáveis, críveis. Legítimas.

Há uma afinidade eletiva com CAT-GUT JIM (Connor Scott), também apresentada no Festival, convocada pela curadoria atenta de Sofia Dias & Vítor Roriz. Por vias distintas – espectral num caso, híper presente no outro –, em ambos a figura performativa é um meio para interrogar o que sobra da identidade quando deixa de contar com narrativas coerentes; uma recusa em separar a herança da invenção, a ficção da dança.

Esta sabotagem sentimental da erudição linear, sóbria, herdada como postura estética, debocha dos arranjos e pactos sociais em torno de papéis e posturas. Mas é também uma caricatura possível do instinto de cada um em perseguir-se, que nunca deixa de correr para o bem e para o mal – aspeto da perseguição do som das colunas no início como quem agarra a própria representação. Em cacos para parecer inteiro.

“[Hoje] Há muito drama mas pouco melodrama a rir-se de si”, nota o performer na conversa. Porque é que num caso seria a sério, noutro fita?  

Entre a comédia do fracasso e a elegância da resistência, no final Bruno senta-se ao lado de um acordeão e retoma a vontade de cantar ao vivo, na primeira pessoa. A pantomima desfaz-se sem falsas distâncias. Vulnerável, despojado. Sincero como até ali. Como nunca.

 

Melodrama: Senza Te

31 maio – 2 junho, TBA – Teatro do Bairro Alto
Cumplicidades Festival 2025 (10 mai – 2 junho)

Apoiar

Se quiseres apoiar o Coffeepaste, para continuarmos a fazer mais e melhor por ti e pela comunidade, vê como aqui.

Como apoiar

Se tiveres alguma questão, escreve-nos para info@coffeepaste.com

Segue-nos nas redes

A tristeza favorita

Publicidade

Quer Publicitar no nosso site? preencha o formulário.

Preencher

Inscreve-te na mailing list e recebe todas as novidades do Coffeepaste!

Ao subscreveres, passarás a receber os anúncios mais recentes, informações sobre novos conteúdos editoriais, as nossas iniciativas e outras informações por email. O teu endereço nunca será partilhado.

Apoios

03 Lisboa

Copyright © 2022 CoffeePaste. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por

A tristeza favorita
coffeepaste.com desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile